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Jogos para sempre #2 - O gol

Encaixes, resiliência e progresso defensivo: Fla solidifica o 'caminho' |  LANCE! 

(Alexandre Vidal/Flamengo)

Esse texto é um trecho e-book a ser lançado em breve, chamado "Corre o tempo no olhar". Espere para conferir!

14 de setembro de 2019

A notícia mais importante das semanas anteriores era a tentativa do Flamengo de comprar Gabigol. O camisa nove de enorme sucesso e idolatria das crianças foi contratado por empréstimo e pertencia a Internazionale de Milão. Os gols e a sintonia com a torcida quase obrigavam o Flamengo a tentar mantê-lo no fim do ano. 

Gabigol era cria do próximo adversário, o Santos. Tinha jogado lá no ano anterior assim como Bruno Henrique. Mas o embate tinha outros ingredientes. 

Se Jesus era o estrangeiro desbancador de todos desde o meio do ano, o clube paulista tinha o seu estrangeiro provocador de inúmeras reações desde janeiro. Jorge Sampaoli, o argentino com quem o Flamengo já tinha sonhado algumas vezes, desembarcou no alvinegro. Desde então tinha transformado um time sem grandes valores no time de melhor futebol do Brasil, brigando pelo título do campeonato. Era de uma coincidência incrível que os dois líderes do campeonato se encontrassem na última rodada do primeiro turno, disputando o título simbólico da parte inicial, cada um com seu Jorge. 

Para mim, era um jogo definitivo. Desbancar o Santos era abrir cinco pontos do adversário mais difícil. Apesar de tecnicamente mais fraco, Sampaoli me parecia o único técnico capaz de rivalizar taticamente com Jesus. Mas Flamengo x Santos também era um jogo de memórias especiais. 

No Maracanã o Santos nunca foi um adversário tão difícil. A exceção foi o Santos de Pelé, que impôs derrotas acachapantes ao Flamengo, inclusive a que fez meu pai quando garoto ter pena do time de vermelho preto e, por isso, virar flamenguista. Mas vencer na Vila Belmiro era um parto e a primeira vez que vi foi em 2009. O time estava em crise, com técnico demitido, perto da zona de rebaixamento mesmo com a volta do Imperador. Perdíamos de 1x0 quando, do nada, Adriano me solta um tiro do meio campo e empata. Depois Pará, na época no Santos, fez contra e vencemos. Andrade, nosso ídolo antigo e técnico interino, dedicou a vitória a Zé Carlos, goleiro falecido naquela semana. A reação em campo vinda do nada, sem qualquer razão, vinda da força do chute de Adriano, era uma metáfora da reação rubro-negra no campeonato que terminaria com o título. 

Na Vila Belmiro também vi o melhor jogo dos últimos dez anos. Em 2011 o Flamengo de Ronaldinho Gaúcho fazia um belo primeiro turno comandado pelo incrível craque veterano de um futebol artístico, ousado e alegre. Mas no Santos também surgia uma força da natureza no talento de Neymar. Era o Santos campeão da Libertadores. Ronaldinho contra Neymar. Um jogaço. 

Eu estava visitando meus avós em Recife. Passei o dia nervoso sem saber se o jogo passaria. Afinal, estávamos no Nordeste e havia o risco de ser transmitido um jogo local. Ninguém na casa gostava muito de futebol e sabia me informar qual jogo passaria. A criança nervosa vibrou de alegria quando a novela da vovó acabou e o jogo contra o Santos era anunciado. 

Com vinte minutos eu já me perguntava o porquê daquela ansiedade toda. Borges tinha feito dois e Neymar fez o gol mais lindo da sua carreira, eleito o mais bonito do ano pela FIFA. Pegou a bola na lateral e passou com toque de letra no meio de dois marcadores. Tabelou com Borges e recebeu na frente de Angelim. Deu um drible tão espetacular que não entendi ele até hoje. Deu toque categórico na saída de Felipe e fez 3x0. Era sacanagem o que jogava. 

O pior é que o Flamengo jogava bem. Com 1x0 Ronaldinho já tinha obrigado o goleiro Rafael a fazer duas lindas defesas. Com 2x0 Deivid perdeu gol absolutamente sem goleiro, debaixo da trave, quase tão incrível quanto um outro perdido contra o Vasco meses antes. Devia ser algo sobrenatural estar tomando o 3x0. 

Mas não durou muito. Aos 28’, Luiz Antônio cruzou e o goleiro Rafael entregou no pé de Ronaldinho. O camisa dez nem comemorou e apenas trouxe ela de volta para o centro do campo. Três minutos depois Léo Moura fez mais um de seus cruzamentos perfeitos e Thiago Neves testou com tudo. Que jogo maluco! Estávamos de novo perto. 

E o time não parava de atacar. Thiago Neves quase fez de novo em tabela com Ronaldinho. Enquanto isso, Ganso meteu na trave do outro lado. Era um jogo eletrizante e Neymar estava possuído. Disparou pela direita e Williams fez pênalti tolo nele. 

A capacidade desse jogo de ser histórico e produzir lances monumentais foi incrível. Existem jogos no futebol em que nada é memorável. São absolutamente esquecíveis, talvez devessem deixar de existir. Enquanto isso, alguns jogos tinham o dom de concentrar tudo de melhor. Quando Elano foi para o pênalti, eu esperava o balde de água fria na reação rubro-negra. Felipe pegou, eu vibrei sozinho e com um grito acordei minha avó. 

Quando ele começou a fazer embaixadinhas, minha gargalhada a fez achar que eu estava louco. No lance seguinte, Deivid deu cabeçada improvável na primeira trave e empatou. Que jogo maluco! 

Eu, na sala da casa dos meus avôs, estava ensandecido. Não tinha WhatsApp na época, e minha vibração compartilhada era gritar na janela. Mas sozinho, em um lugar que eu não conhecia, não tinha sentido. O que estava acontecendo naquele jogo? Viraríamos? Perderíamos? Não dava para saber. 

Aos 5’ do segundo tempo Neymar recebeu pela ponta e fez mais um. Santos 4x3 e eu já me desanimei todo de novo. 

Mas o jogo era maluco e não parava. De um lado e de outro. Neymar fez jogadaça, bateu de fora e obrigou Felipe a fazer boa defesa. Deivid aproveitou cruzamento de Ronaldinho e Rafael defendeu. Depois Léo quase fez contra. Enquanto isso Ronaldinho esbanjava categoria no gramado. Quando recebeu de Williams na entrada área, driblou o primeiro com um toque de letra e passaria no meio de dois se não fosse pela falta. 

O que veio a seguir ficaria na minha memória para sempre. Enquanto todos esperavam e se preocupavam com o ângulo, Ronaldinho foi genial mais uma vez e tocou de mansinho, calmo, por debaixo da barreira. A narração de Luís Roberto ficou para sempre na minha cabeça. 

- RONALDINHO GAÚCHO! E ESSE GOL LEVA GRIFE DO GAÚCHINHO! 

Ficava claro. Era Ronaldinho ou Neymar. Um dos dois resolveria o jogo. Um era pela classe e inteligência, já que o ritmo não era o mesmo dos tempos áureos. Enquanto isso, o garoto santista era imparável. Os ataques do Santos eram perigosos e vinham todos dele. 

Mas não adiantou. Aos 35’, Thiago Neves esperou o momento exato para tocar. Da entrada da área Ronaldinho bateu e ela ainda desviou no zagueiro antes de entrar no cantinho. E acabou a luz na casa da minha avó. 

Eu desesperado não sabia o que fazer. Acordei meu tio para ele me ajudar. Não tinha internet e não tinha rádio carioca que pegasse em Recife. Eu não sabia sequer se o terceiro gol de Ronaldinho tinha sido validado. E fiquei acordado por pelo menos uma hora sem saber até a luz voltar e os gols passarem de novo no fim do Jornal da Globo. Que angústia. 

Outro Flamengo e Santos foi memorável não na hora, mas pelo que aconteceu depois. Neymar se despedia do Santos antes de ir para o Barcelona e no final do jogo foi substituído por um garoto. Um menino franzino, naquela fase esquisita da adolescência. Aos dezesseis anos o garoto Gabriel estreava pelo profissional, contra nós. Oito anos depois, os lados estavam invertidos. 

Flamengo x Santos em um sábado à tarde. Final de campeonato. O jogo era tão importante que o grupo Globo destacou seu narrador de TV aberta, Luís Roberto, para narrá-lo no pay-per-view. Mateus levou o irmão pequeno vestido de um manto com o nome de Gabigol escrito improvisado. Os dois primeiros colocados, Jesus e Sampaoli frente a frente, e o jogo de xadrez. 

E realmente o foi. Todos os jogadores jogavam muito bem, mas ninguém conseguia ter chances muito claras. Os dois times assustavam pelas quase chances: um cruzamento sem finalização de Arrascaeta, chutes prensados pelos jogadores do Santos, um cruzamento de Soteldo que terminou em Diego Alves. O caminho do alvinegro praiano era pelas pontas, com o venezuelano e Marinho dando enorme trabalho para Rafinha e Filipe Luís. O ponta santista era muito rápido para o lateral esquerdo rubro-negro e infernizava sua vida buscando sempre as suas costas. O jogo era truncado, mas muito bem jogado, um verdadeiro tabuleiro de xadrez com peças em movimento constante.

Alguns jogos podem ser marcados por inúmeros lances. Alguns podem ser lembrados pelos muitos gols. Mas outros só precisam de um gol, de um toque na bola, para entrarem para a história ou para ficarem guardados para sempre no coração, na mente, e na pele dos apaixonados.  

Talvez esse gol fique meio apagado no meio dos tantos de 2019. Quem sabe até desapareça entre os lances decisivos de jogos mais decisivos, e no futuro ele pareça um golaço sem importância.  

Meu pai por exemplo me contou várias vezes sobre um gol em um FlaxFlu de 1985, cuja história contarei mais a frente, que aparentemente não tinha a menor importância. Eu sempre me perguntei o motivo da cisma dele com esse gol.  

Mas agora eu entendia. Achei o meu gol para sempre. O gol que me deu muito mais do que só uma vitória. Deu entendimento. Deu música, poesia, nostalgia e maravilha.  

43’ do primeiro tempo. O sentimento era de jogo apertado e de 0x0 até o intervalo. Qualquer coisa poderia acontecer, mas era improvável já naquele momento. Aconteceu. 

Éverton Ribeiro interceptou passe de Sasha e rapidamente lançou para Gabigol no ataque. Por costume, eu já sabia o que ele faria. Foram tantas vezes vendo Gabriel naquele ano que sua sede de chutar para o gol a qualquer momento virou previsível. Quando pegou a bola pela direita, viu o zagueiro na frente e ajeitou para o lado, o chute forte já era claro.

A canhota fez o movimento, mas a batida na bola foi fraca. Bruno Henrique estava do outro lado, poderia ser um cruzamento. Mas ela não estava em direção a ele. Subiu, subiu e começou a descer. O goleiro se esticou todo para pegá-la e só depois das três horas em que a bola ficou no alto eu entendi o que ele tinha feito. 

Trave, chão, rede. Encobriu o goleiro de fora da área. 

Gênio. 

Conforme a bola foi descendo, o Maracanã inteiro foi se dando conta do que ele tinha feito. Das pernas firmes de Gabigol saiu o gol que pôs de vez o Flamengo de 2019 no meu coração. Um gol antológico, de um ano para sempre. Um simples segundo de bola no ar que marcou todos os sessenta mil que pararam seus corações por um breve momento de ansiedade, antes que ela caísse onde Gabigol queria, onde só ele tinha visto o espaço. 

E ele sabia disso. Tinha total ciência do que tinha feito. Enquanto nós enlouquecíamos com aquele gol e nos perguntávamos o que tinha acontecido e se aquilo era real, ele lá embaixo comemorava parado, com os braços cerrados como que dizendo: 

- Eu jogo para caralho.

 E eu estava rendido. O segundo tempo ainda foi muito bom e de lances incríveis. Bruno deu drible espetacular na linha de fundo e quase fez 2x0. Éverton Ribeiro fez um jogo incrível, o melhor em campo naquele dia, distribuiu canetas e fez jogada linda na qual Arrascaeta quase pôs para dentro. O próprio Gabigol quase fez com um minuto de jogo e no último lance perdeu a jogada quando demorou uma vida para tocar para Bruno fazer o segundo.

Mas não interessava mais. Aquele gol era a única coisa que importava. Era para sempre.  

Estava ali na minha frente. Eu resolvi naquele dia a minha tatuagem em caso de título do Flamengo. No samba da Estácio de 1995, música entoada nas arquibancadas desde então e por mim considerada a mais bonita dos rubro-negros, havia um trecho quase despercebido. Depois de gritar nomes de ídolos do passado como: 

“Diamante Negro, Fio Maravilha, Domingos da Guia, Zizinho, Pavão. Gazela negra.” 

Vinha um discreto. 

“Corre o tempo no olhar”.

 Completado por “Será que você lembra como eu lembro o Mundial que o Zico foi buscar?” 

Eu já gostava do verso, mas naquele dia ele passara a fazer total sentido. O meu olho via Gabigol fazer aquele gol e viu também Adriano fazer de cobertura contra o Coritiba em 2009. O meu olho via o camisa nove perfeito e lembrava de todos os outros noves folclóricos e fantásticos que nos tinham enchido de alegria. O meu olho via todos os Flamengos e Santos, via os dois meses de Jorge Jesus, via todo o caminho traçado para chegar ali. E meu olho via o futuro, com Gabigol, Bruno, Éverton e os títulos que ainda viriam. Meu olho via as crianças. Via o irmão do Mateus vibrando com Gabigol e via a mim mesmo chorando com os gols de Adriano, de Obina e do Pet. Meu olho via os sentimentos, as tristezas, as alegrias e os sonhos. Meu olho via todos os aprendizados me dados pelo Flamengo. O tempo corria diante dos meus olhos e o futebol ganhava um pouco  mais de sentido. 

Depois daquela tarde, o sentimento era de que o título merecia ser nosso. Precisávamos jogar contra todo mundo de novo para vencê-lo, mas já merecíamos. Por todos os gols, por todos os jogos, vitórias, derrotas e anos esperando. 

E precisávamos de Gabigol. O Gabriel de 23 anos lá embaixo dava ao Gabriel de 23 anos lá em cima na arquibancada uma epifania, um entendimento do porquê daquela loucura toda, com um simples toque com o pé em uma esfera de couro. Que poderia não ter significado nenhum, mas tinha todos. Um chute, um lance, todos os sentimentos. 

Obrigado, Gabigol.



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