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LGBTorcida: A relação dos torcedores LGBTQIA+ do trio de ferro pernambucano com o futebol

Torcedores LGBTQIA+ contam suas experiências de exercício do ato de torcer para um time de futebol de Pernambuco, estado com os maiores índices de LGBTfobia do país.

Arte: Izabelly Rocha


FUTEBOL E POLÍTICA: UMA RELAÇÃO PROVÁVEL?

Há quem diga que futebol e política não se misturam, mas a História desse esporte prova o apelo político e social que ele tem, quando no passado a modalidade foi utilizada como instrumento para construção de uma identidade nacional única, bem como para propaganda de discursos ideológicos, legitimação de governos autoritários, controle das massas e coerção estatal. O futebol também reafirma seu caráter político, ao refletir a estrutura social em seus valores, costumes, ideologias e preconceitos, seja nas arquibancadas, dentro das quatro linhas ou na gestão dos clubes.

Alguns times são protagonistas na luta por pautas sociais e manifestações, tais como: a inserção de jogadores negros nos elencos, resistência aos regimes autoritários do século XX, apoio ao futebol praticado por mulheres, campanhas contra assédio, machismo, racismo, violência doméstica e, mais recentemente, contra a lgbtfobia.  


LGBTFOBIA EM PERNAMBUCO

Segundo dados divulgados no Anuário Brasileiro de Segurança pública 2021, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Pernambuco foi o estado da Federação que apresentou os maiores índices de violência contra a população LGBTQIA+, no ano de 2020, como mostra o gráfico a seguir:

 

 

Os dados são assustadores. De acordo com o número absoluto de casos, dos 1169 registros de lesão corporal dolosa ocorridos no Brasil em 2020, 604 aconteceram em Pernambuco e quando se trata de homicídios dolosos temos 121 registros, sendo 39 em Pernambuco. Estes números podem ser ainda maiores, se levarmos em consideração a subnotificação e a falta de dados que qualificam os crimes como LGBTfóbicos, que atrapalham o mapeamento dos dados para produções estatísticas sobre taxas de criminalidade.

Já no ano de 2021, entre os meses de junho e julho, tivemos em Pernambuco o registro de 4 casos de assassinatos de pessoas transexuais, num período de 20 dias. Esses fatos levantaram mais uma vez questionamentos sobre a necessidade de ações efetivas por parte do Governo do Estado, para o combate a crimes motivados pela orientação sexual e identidade de gênero das vítimas.  


LGBTFOBIA NO FUTEBOL PERNAMBUCANO

Quem costuma frequentar estádios, sabe que não é incomum ouvir cantos e xingamentos de cunho LGBTfóbico e misógino, durante as partidas, proferidos contra torcedores, jogadores, comissão técnica e equipe de arbitragem, mas não é preciso ir tão longe para presenciar esses crimes. A internet está repleta de comentários que buscam inferiorizar as torcidas, os clubes e os seus símbolos. No caso dos clubes pernambucanos, alguns fazem uso de apelidos sexistas, como “Barbie”, "Susi", “tricobarbie”, "alvirrosa", “rubro-neca”, “leoa” e “cachorra de peruca”. Esses termos criminosos são frequentes no futebolístico, onde a lógica ainda exalta o padrão do torcedor homem, heterossexual e branco em detrimento a todas, todos e todes que não se encaixam nesse perfil, o que leva pessoas LGBTQIA+ a se sentirem intimidadas em expressar sua sexualidade quando frequentam estádios ou vestem a camisa de seus times.

O time de fut7 do Santa Cruz, anunciou para o mês de novembro, a confecção de dois lindos modelos de camisa em homenagem ao movimento LGBTQIA+, uma branca e uma preta. O clube, pioneiro na defesa de pautas sociais, conta com ao menos um coletivo de torcida queer, o Coral Pride. A notícia do lançamento da camisa foi um sucesso na minha timeline do twitter, mas bastou uma busca rápida, complementação desse mesmo texto que você está lendo, para perceber que fora da bolha a ação não foi bem vista. Certamente não veremos o time principal de campo usando essa camisa.

E nem mesmo as campanhas do Outubro Rosa são imunes ao preconceito. Basta um time anunciar uma camisa cor de rosa que logo aparecem vários perfis de pessoas com masculinidade frágil para comentar que aquela cor não deveria ser utilizada numa camisa de clube. Jogar de rosa então? Nem pensar! E se você acha que o problema está no rosa ou no arco íris, lhe convido a lembrar da camisa preta em combate ao racismo, lançada pelo Náutico (que historicamente é um clube elitizado e atrelado à prática racistas). A ação foi boicotada por alguns dinossauros do clube, que não permitiram que a bela camisa fosse usada nas partidas.


O caso Koury   


Gilberto em sua visita à Ilha do Retiro. Foto: Anderson Stevens

Às vésperas do Dia Internacional da Luta Contra a Homofobia (17 de maio), o Sport Club do Recife vivenciou um dos episódios mais lamentáveis de sua história. Em 14 de maio, circulou na internet um áudio vazado de um grupo de whatsapp, nele o advogado Flávio Koury, membro do Conselho Deliberativo do time rubro-negro, atacava Gilberto Nogueira, ou Gil do Vigor, (ex-BBB e torcedor do clube), após a ação de marketing do Sport que presenteou o economista uma camisa e uma visita à Ilha do Retiro, onde ele fez sua dancinha “tchaki tchaki”. No áudio, sobre a dança de Gil, Koury fala  “1,2 milhão de visualizações, 1,2 milhão de pessoas achando que o Sport só tem viado, só tem pu**, só tem galinha, só tem bicha”

Após a viralização, a hashtag #ForaKoury foi levantada nas redes sociais e alcançou inclusive pessoas alheias ao futebol. Depois de muita pressão, o Sport lançou uma nota, entrou em campo com a braçadeira de capitão nas cores da bandeira do arco-íris, os jogadores que perfilaram com camisas com seus nomes acrescidos de “do Vigor” entraram com uma faixa contra a homofobia e comemoraram o gol fazendo a mesma dança de Gil. Mas o caso ainda não foi finalizado. Apenas em 1º de setembro o pedido de exclusão do conselheiro foi requerido, dando ao acusado 15 dias úteis para apresentar sua defesa.

Em 19 de outubro, a comissão de ética do CD rubro-negro apresentou um parecer sugerindo uma advertência por escrito, mas a punição ainda será discutida pelo conselho no mês de novembro. Nesse mesmo dia, por meio do Twitter, Gil desabafou sobre o caso escrevendo: “Eu tento fingir que esse episódio do meu pós não me machucou mas… Não deixarei de amar o meu clube mas o dia de hoje não foi fácil após essa notícia! Tento não ler sobre, fingir que não aconteceu pois me trás lembranças que não gosto de lembrar. É triste!”.


QUEM SÃO OS TORCEDORES LGBTQIA+ DO TRIO DE FERRO

A tradição do futebol pernambucano é centenária. Os três grandes clubes de futebol da capital arrastam milhares de torcedores fanáticos a seus estádios, dentre eles, torcedores LGBTQIA+. A cidade do Recife ganha um arco-íris de cores junto à  tradicional multidão de vermelho (acompanhado de branco, preto ou ambos), que festeja nos entornos do Arruda, Aflitos e Ilha do Retiro.

Mas quem é essa torcida LGBTQIA+ de Pernambuco? Ciente que é impossível traçar um perfil único, eu conversei com 4 torcedores para ouvir sobre suas relações e experiências com o futebol, com o time do coração e com o compromisso de serem eles mesmos, enquanto amantes de um dos clubes do trio de ferro.

 

Entrevistas

Renan - Homem cis gay (23 anos) e torcedor do Sport 


Como começou sua relação com seu time? Você recebeu incentivo de alguém?


- Comecei por meio do meu irmão, quando criança não entendia muito bem sobre e quando me perguntavam por qual time eu torço eu dizia o primeiro que vinha a mente no momento, até que um dia meu irmão me disse que eu deveria torcer para o Sport , desde então sou apaixonado por esse clube. 


Morando num estado com altos índices de violência contra pessoas lgbtqia+, você se sente confortável/seguro em ir ao estádio e exercer seu ato de torcer?


- Infelizmente não, por diversas vezes já deixei de ir ao estádio devido a violência. Sem contar que já presenciei casos em que torcedores foram hostilizados por outros torcedores (héteros) e isso acaba deixando nós da comunidade com muito medo de frequentar os estádios de futebol. 


O futebol ainda é um ambiente muito masculino e heteronormativo. Você sente que seu time enquanto instituição abraça a causa LGBTQIA+?


- Não, eu sempre senti a falta de políticas do Sport sobre a temática LGBTQIA+, via em outros clubes, mas pouquíssimo do Sport. 


Em maio deste ano o Sport protagonizou um caso de homofobia de Flávio Koury para com o ex-BBB Gil do Vigor e o processo ainda não foi finalizado. Como você avaliou a postura do Sport? Isso te impactou de alguma forma? O que você acha que deveria ser feito?


A postura do clube foi inadequada, deixando uma sensação de impunidade, pois eu já tinha uma visão que o clube não era tão envolvido nessas causas e quando houve a oportunidade de mostrar, pouco fez.  E sim, me impactou diretamente saber que um "cara" que trabalha diretamente para o meu clube de paixão tem atitudes homofóbicas e acaba passando impune, isso acaba passando uma sensação de insegurança. O clube deveria ter tomado as medidas cabíveis, afastando o funcionário do cargo e do grupo de sócios, além de abrir um processo criminal de homofobia contra o mesmo.


Deborah - mulher cis lésbica (27 anos) e torcedora do Náutico

 

Como começou sua relação com seu time? Você recebeu incentivo de alguém?


- Meu pai. Desde que me entendo por gente, me leva ao campo de futebol, especificamente o campo do Náutico. Transmitiu a paixão dele pelo futebol e pelo náutico para mim. Tanto que por um tempo fui atleta de futsal. E é inexplicável esse sentimento que ele despertou em mim. Espero um dia poder transmitir isso para meus filhos e/ou filhas, sobrinhos e/ou sobrinhas.



Morando num estado com altos índices de violência contra pessoas LGBTQIA+, você se sente confortável/segura em ir ao estádio e exercer seu ato de torcer?


- Não. Vou ao estádio por paixão, mas racionalmente falando, não iria. Primeiramente por ser mulher, mesmo com toda luta, somos extremamente vulneráveis no ambiente do futebol, e enquanto uma mulher LGBTQIA+, me sinto triplamente vulnerável.


O futebol ainda é um ambiente muito masculino e heteronormativo. Você sente que seu time enquanto instituição abraça a causa LGBTQIA+? 


- Sinto que existe uma movimentação, mas "abraçar" é uma palavra muito forte. Eu diria que existe uma movimentação, uma vontade, e até mesmo pelas cobranças sociais, isso está acontecendo. Mas ainda falta muito para o meu time e o futebol abraçarem a causa de fato.


Recentemente você pediu sua noiva em casamento nos Aflitos. Como foi a repercussão do pedido na torcida? Vocês foram apoiadas?


Pedido de casamento no Estádio dos Aflitos: Deborah Vasconcelos


- Olha, eu tive um certo receio, mas dos comentários que tivemos acesso, 90% foram positivos. Sinto que a torcida (em sua maioria) está fazendo essa movimentação de forma muito positiva para várias pautas sociais, incluindo a pauta LGBTQIA+, o que reflete no ambiente do Clube. Mas de toda forma, quero pontuar que o clube abriu as portas para que esse pedido de casamento desse certo, os funcionários e funcionárias, muito empenhados e solícitos.



Eduarda - mulher cis lésbica (20 anos) e torcedora do Santa Cruz

Como começou sua relação com seu time? Recebeu incentivo de alguém?

- A minha relação com o futebol começou no berço, meu pai é diretor de um time, então eu fui criada na beira do campo, toda minha família é apaixonada por futebol, mas minha identificação pelo meu time começou através de uma namorada. Sou de família rubro-negra, mas nunca me identifiquei com o amor da minha família pelo Sport. Então conheci o Santa pela visão de uma torcedora fanática que na época era minha namorada, de cara, me identifiquei, me senti acolhida e entendida, encontrei amor, compreensão e liberdade pra torcer no Santa Cruz. 


Morando num estado com altos índices de violência contra pessoas LGBTQIA+, você se sente confortável/segura em ir ao estádio e exercer seu ato de torcer?

- Não me sinto segura pra ir aos jogos, é um misto de aflição e medo. Sempre fico me perguntando se está tudo bem comemorar um gol com um beijo na minha namorada, fico hipervigilante dentro e fora do estádio. Quando posso ir, vou esperando que eu consiga ir e voltar do estádio sem sofrer algum ataque homofóbico. 


O futebol ainda é um ambiente muito masculino e heteronormativo. Você sente que seu time enquanto instituição abraça a causa LGBTQIA+? 

- Meu time até abraça a causa LGBTQIA+, mas é um abraço frouxo. Existe um coletivo no Santa, o Coral Pride que não nos deixa sem voz dentro do clube, que não deixa a diretoria esquecer que nós, torcedores lgbtqia+ existimos e apoiamos o clube tanto quanto qualquer outro torcedor, porém acredito que ainda há muito trabalho a ser feito pela Comissão de Inclusão e Diversidade do clube.


Ayron - homem trans (30 anos) e torcedor do Náutico 

Como começou sua relação com seu time? Recebeu incentivo de alguém?

 - Eu nunca tive incentivo de ngm com relação a futebol. Minha família toda é rubro negra e mesmo meu pai querendo que eu torcesse pro time dele, era algo que ele não insistia muito pois para ele era mais importante que eu aprendesse a cuidar da casa do que gostar de algo "de homem". Então minha paixão pelo futebol, especialmente pelo náutico surgiu um pouco mais depois dos 15 anos. 



Morando num estado com altos índices de violência contra pessoas LGBTQIA+, você se sente confortável/seguro em ir ao estádio e exercer seu ato de torcer?


- Não me sinto nem um pouco confortável nesses espaços, tanto que, nunca fui aos aflitos, apesar de ser um sonho, me sinto inseguro. Infelizmente já passei por uma experiência não muito boa com torcida organizada de time rival, o que me deixa ainda mais com receio de frequentar esses espaços. 


O futebol ainda é um ambiente muito masculino e heteronormativo. Você sente que seu time enquanto instituição abraça a causa LGBTQIA+? 


- Apesar da diretoria, marketing, colocarem campanhas sobre a temática, eu acredito que o preconceito ainda é muito enraizado. Frequentemente assisto lives de jogadores com falas homofóbicas, transfóbicas como se fosse uma piada, entende? Então, de que adianta uma campanha se os próprios jogadores não se posicionam de forma positiva? Infelizmente, muitos torcedores, as vezes até mesmo que não tem acesso ao assunto, terminam copiando essas falas/ações.


VISIBILIDADE E REPRESENTATIVIDADE

Nessa pequena amostragem de depoimentos, podemos perceber que torcedores LGBTQIA+ enfrentam mais dificuldades para exercer o ato de torcer que torcedores homens heterossexuais, por exemplo, e mesmo o futebol sendo um ambiente ainda heteronormativo é preciso lembrar que existem sim pessoas de todas as orientações sexuais nas arquibancadas e suas vivências enquanto torcida devem ser sempre validadas.

A nós torcedores não LGBTQIA+, cabe o apoio na luta e na cobrança por um espaço futebolístico aberto à todos os indivíduos, onde clubes não apenas se posicionem contra preconceitos pra entrar na moda ou arrecadar dinheiro em cima de pautas sérias e legítimas, mas que haja políticas de compromisso com a diversidade e inclusão e também a aplicação da punição cabível à quem agride o maior patrimônio dos times de futebol: a torcida. 

É desejo dos torcedores LGBTQIA+ estádios e ruas seguras para apoiar seus times com orgulho. E não é este também o desejo de todo aquele que genuinamente torce?  


Enquanto não fecha, tamo aqui!


Gabryele Martins






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