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Futebol Americano: perseverança e disciplina driblando a falta de incentivo brasileiro

Foto: Divulgação
No país do futebol (jogado com os pés), o futebol americano foi, por muitos anos, considerado um intruso. Algo passageiro e que não iria atrair torcedores. Muitos, hoje, ainda pensam dessa maneira. Entretanto, estão enganados.


Como esporte assistido na televisão, as primeiras tentativas de introduzir o futebol americano no Brasil foram, de fato, mal sucedidas. Em 1968, o football apareceu pela primeira vez na televisão brasileira com a TV Tupi, que transmitia jogos da NFL (liga profissional dos Estados Unidos). Entretanto, a audiência foi baixa e as transmissões duraram apenas oito meses.

Em 1980 e 1990 foi à vez da TV Bandeirantes, principalmente na figura de Luciano do Vale, tentar fazer com que os brasileiros acompanhassem a modalidade. Mais uma vez, as exibições não duraram muito. Ainda que aquela experiência tenha deixado um legado, a base de fãs era pequena. Foi somente nos anos 2000 que o esporte começou a ganhar um número significativo de adeptos, principalmente com as transmissões da ESPN e BandSports e, mais tarde, do Esporte Interativo.

O aumento de assinantes de TV a cabo no país, aliado ao maior alcance da internet entre a população, foi o grande motivo pelo qual o futebol americano se expandiu no Brasil. O crescimento é tamanho que a NFL estuda trazer jogos da liga para o Brasil. Para ter-se uma ideia, no último Super Bowl, cerca de 500 mil pessoas acompanharam a partida na ESPN. Além disso, no twitter, a hashtag da emissora estava entre os assuntos mais comentados do mundo.

Outro fato importante para o Brasil, que ocorreu na última temporada da NFL, foi a estreia do primeiro brasileiro na liga. Cairo Santos, kicker do Kansas City Chiefs, teve uma temporada de razoável para boa e espera se fixar.


A PRÁTICA DE FUTEBOL AMERICANO NO BRASIL

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No entanto, o apoio à prática do futebol americano no Brasil ainda é muito pequeno. Tanto os times, como a Seleção Nacional, não recebem a atenção que merecem.

A história do futebol americano no país, como prática, começou em 1986. Nas praias cariocas, surgiu o que chamamos de beach football. Idealizado por Robert Segal e Thomaz Brazil, o esporte contava, inicialmente, com cerca de 20 praticantes.

Depois, nos anos 90, surgiu em São Paulo, o flag football, uma versão do futebol americano jogado sem equipamentos e com menos contato, e a partir daí o esporte foi chegando a todas as regiões. Em 1991 surge a primeira equipe de futebol americano de grama: o Joinville BlackHawks.

O número de praticantes cresce a cada ano, sem dúvidas. O Brasil tem duas ligas semiprofissionais: o Campeonato Brasileiro, organizado pela Confederação Nacional, e o Torneio Touchdown, montado de maneira independente, além de diversas competições regionais. O crescimento é tão significativo que, neste ano, a Seleção Brasileira de Futebol Americano, conhecida por Brasil Onças, conseguiu uma inédita classificação para a Copa do Mundo, que será realizada de 9 a 18 de julho, em Ohio nos Estados Unidos, com transmissão da Match ESPN. Contudo, o incentivo é inversamente proporcional.

Vários canais de esporte dão total atenção para o futebol americano. Assumindo uma postura didática, apresentando e divulgando a modalidade. Porém, parte da mídia tradicional costuma influenciar de forma negativa a visão da população em relação ao esporte. É comum vermos os veículos rotularem o futebol americano como extremamente violento, perigoso ou chato. Estereótipos equivocados, que deixam de lado a essência do esporte: a tática e a inteligência, e acabam gerando preconceitos.


LUTA DENTRO E FORA DE CAMPO 

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O ambiente do futebol americano no Brasil não é luxuoso nem milionário como o da NFL e os clubes encontram muitas dificuldades, até mesmo nas coisas básicas, como os materiais. A grande maioria não possui patrocinadores e os atletas precisam arcar com parte dos custos. “As dificuldades são constantes nos times, principalmente financeiras, muitas vezes temos que gastar muito do próprio bolso. Isso sim é amor ao esporte e união em prol da evolução do futebol americano” afirma Dhiego Taylor, offensive line do Lusa Lions e da Seleção Brasileira.

Algumas equipes de futebol americano conseguem vínculo com importantes clubes brasileiros de futebol, como é o caso do Coritiba Crocodiles, Flamengo FA, Vasco Patriotas, Corinthians Steamrollers, Botafogo Repitels e alguns outros. O uso da “marca” é voltado para atrair público, trazendo o torcedor do clube de futebol para o futebol americano. Alguns desses clubes disponibilizam estrutura para que os times de FA possam treinar. Mas, geralmente, não contribuem com dinheiro ou outros investimentos.


Para se manter e conseguir patrocínio, os clubes precisam de muita insistência e criatividade. Um exemplo disso é o Porto Alegre Pumpkins. Em janeiro, os Pumpkins lançaram um vídeo sensacional, onde, em uma comparação com o futebol (soccer), o vídeo propõe uma reflexão sobre o abismo entre as duas modalidades no país. A campanha buscava, justamente, sensibilizar as pessoas e conseguir patrocínio para a equipe.


Posso dizer com propriedade que já foi muito mais difícil jogar este esporte no país. Hoje, dentro do seu nicho, já existe muito mais informação, o número de praticantes aumentou pelo menos 20 vezes em relação à quando comecei. Porém, existem sim várias dificuldades, entre elas a constante luta dos times pelo Brasil a fora, para conseguir campo de treinamento, de semana a semana. A falta de apoio também é uma luta que todos os times conhecem” declara Vinicius Bergmann, fundador do Porto Alegre Pumpkins e atualmente wide receiver do Vasco Patriotas.

Além disso, os atletas muitas vezes encontram dificuldades em conseguir tempo para treinar, visto que o esporte é amador, ou seja, não remunerado e eles exercem outras atividades a fim de garantir o seu sustento. “Uma dificuldade muito grande é o tempo livre para a prática do esporte. São necessários ao menos 3 dias da semana para treinos. E o gasto financeiro inicial que cada atleta tem também é muito grande. Os básicos são com helmets (capacetes) e facemask (ou faceguard, grade do capacete) específico para cada posição. Shoulderpads (protetor de ombros). Sempre importante lembrar que: a economia não deve ser feita. É a sua saúde e de outros que estão e jogo” conta Ronei Stein, ex-wide receiver do Caxias Gladiators, que parou de jogar pela falta de tempo, mas continua torcendo pelos seus ex-colegas no Bento Gonçalves Snakes.


O RUGIDO DA ONÇA


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Na Seleção Brasileira, não é diferente. A classificação das Onças para o Mundial foi um marco na história do futebol americano no Brasil, no entanto, a equipe encontra dificuldades para custear a sua participação no evento, já que o time possui apenas um patrocinador – a EWC Watches – e o governo não investe na modalidade. Muitas empresas não puderam contribuir, pois o contexto econômico de crise não permite e o Governo Federal apoia somente os esportes olímpicos.

Os jogadores compraram as passagens com recursos próprios e a verba repassada pelo patrocinador não cobre toda a taxa de inscrição, que é de 38mil dólares e inclui hospedagem e alimentação. Para conseguir chegar ao valor total, foi desenvolvida uma força-tarefa para pedir a ajuda da população. Diversas rifas e até uma “vaquinha” online foi criada (para mais detalhes, acesse o site http://brasilnomundial.com.br/). “Por se tratar de um valor alto, toda ajuda é bem vinda. Um sonho sonhado sozinho é apenas um sonho. Um sonho sonhado junto é realidade. A vaga do mundial já foi difícil de absorver, a ficha só vai cair quando chegarmos lá!” frisou Dhiego.


Apesar de tantas dificuldades, os jogadores afirmam que o time está preparado e os desafios servem para motivá-los ainda mais. Os atletas preferem não criar expectativas e querem surpreender a todos. “Estamos indo sem muito parâmetro, temos poucos vídeos dos times que podemos enfrentar. Então, não sabemos o nosso real potencial dentro da competição. Mas, acredito que vamos ter um bom desempenho, somos um time disciplinado, se conseguirmos ganhar da França podemos chegar até uma semifinal” disse Ramon Martire, quarterback do Brasil Onças e do Botafogo Repitels.
 
Ramon Martire e Dhiego Taylor, atletas do Brasil Onças
(Foto: Divulgação).
A ESTREIA: O primeiro jogo do Brasil Onças pelo Mundial será quinta-feira, às 16h30min, contra a França. O Brasil está no grupo B da competição, ao lado de França, Austrália e Coreia do Sul. No grupo A estão Estados Unidos, México, Japão e Canadá. A divisão se deu por base no ranking da IFAF. Como os brasileiros nunca disputaram um torneio oficial estão em último lugar na lista.


A PAIXÃO PELO ESPORTE

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O amor pelo futebol americano, que está se espalhando cada vez mais e com mais força, costuma nascer das mais distintas maneiras. Para Ronei Stein, ele nasceu de forma indireta, a partir da paixão dele por outro esporte. “Eu gostava de basquete e do Boston Celtics. Lá na década de 90. Os colegas, cada um torciam por um time. A maioria era Bulls e Lakers. E na Band passavam os jogos da NBA e da NFL. Era também a época de videogames. Nós comprávamos Madden para jogar. Como eu era "Boston", obrigatoriamente eu torceria pelo Patriots e era esse que eu jogava. Quem era Lakers, ficou Rams os colegas que eram Bulls, escolhiam os Bears” explica.

Se hoje jogar futebol americano ainda provoca certo receio, pela fama de ser um esporte muito violento, alguns anos atrás a iniciação no esporte era mais complicada ainda. Devido, principalmente, a falta de informações.

Os primeiros times costumavam surgir a partir de grupos de amigos, que, mesmo sem muita perspectiva de futuro, se aventuravam no mundo do football. “Em 2004, quando ainda no ensino médio em um colégio em Porto Alegre, um amigo (que fundou o Pumpkins junto comigo um ano depois) começou a levar uma bola de futebol americano para o colégio e causou curiosidade em vários colegas nossos. Começamos a praticar, gostar e aos poucos nos interessamos cada vez mais, até que resolvemos fundar um time. Na época não existiam times no Rio Grande do Sul e, sem contar os times que jogavam nas areias do Rio de Janeiro, acredito que deviam existir no máximo uns 10 ou 12 times pelo Brasil. Hoje são mais de 150 e com equipamentos” conta Vinicius Bergmann.

O quarterback Ramon Martire foi outro que migrou do basquete para o futebol americano. “Um amigo me convidou para treinar. No começo eu jogava basquete e não deu muito certo, Porém, um ano depois comecei a levar mais a sério, e nunca mais parei de praticar e estudar o esporte” afirma. Além disso, o jogador conta que já teve experiências incríveis e outras nem tão boas. “Conheci muitos lugares por causa do esporte, no Brasil e alguns fora. Conheci muitas pessoas sensacionais. Já perdi e emprego por causa do esporte, e hoje ele representa muito na minha vida. Já tive algumas propostas para ser um jogador profissional, mas todas fora do Rio de Janeiro e esse foi um dos motivos que me levaram a rejeitar essas ofertas. Mas espero que um dia tenha essa oportunidade de novo.” completa.

Já Dhiego Taylor percebeu que levava jeito para o esporte enquanto treinava na praia. “A paixão pelo esporte nasceu quando comecei a treinar na praia de Santos. Vi que tinha potencial, que meu tamanho e peso eram aproveitados na linha ofensiva” com 1,94m de altura e 148 kg, ele ainda enfatiza “isso que é legal: é um esporte democrático”.


O offensive line conta que também viveu histórias curiosas e de muito aprendizado. “Uma vez, em um torneio em Brasília (torneio capital), me deparei com uma senhora (um anjo) vendedora de coxinhas. Pensa numa coxinha divina. Pois é, comi 18!” brinca o atleta.
 
Equipe do POA Pumpkins (Foto: arquivo pessoal)
De fato, não faltam histórias curiosas em relação ao esporte. O primeiro Campeonato Gaúcho de Futebol Americano, realizado em 2008, está cheio delas. “Eram 4 equipes para jogar 4 jogos cada, em um dia só. Isso por si só já uma loucura, se levarmos em conta que o Porto Alegre Pumpkins foi com 19 jogadores para jogar 4 partidas, sem equipamentos nem nada. Mas, o mais curioso foi que o Pumpkins era o time responsável por levar as traves para serem usadas como Goal Posts, então colocamos no ônibus e fomos para o campeonato em Santa Cruz. Chegando lá, saímos do ônibus e nos esquecemos de pegar as traves. Quando fomos lembrados, minutos antes da primeira partida começar, dissemos que outro time deveria pegar, já que nós tínhamos trazido as goleiras até lá. Nenhum time quis ir lá pegar, então o primeiro campeonato gaúcho de futebol americano foi realizado sem goal posts. O POA Pumpkins foi campeão invicto” relembra Vinicius, que atuou como wide receiver e presidente da equipe até 2013.

Vinicius conta ainda que, certa vez, viajou com a equipe do Pumpkins até Ponta Grossa, no Paraná, em um micro-ônibus. “Eram 22 jogadores, indo viajar por 15h horas para jogar um amistoso de futebol americano. O ano era 2009, não tínhamos equipamento nenhum, só chuteiras, uniforme e bola pra jogar. Obviamente, não cabiam os 22 jogadores e as malas de cada um, então eras malas no corredor e em cima dos jogadores, para caber tudo, por que o micro-ônibus não tinha compartimento para as malas” recorda Vinicius, que também já defendeu a Seleção...

Mas, como nem só de alegrias vive o esporte, acidentes também acontecem. Ronei, que também já foi jogador, conta sobre um fato que aconteceu enquanto defendia o Caxias Gladiators. “Eu jogava de wide receiver no Caxias Gladiators e eu era um jogador muito esforçado, nada mais que isso. E vi que o time precisava de linha ofensiva. Nos treinos, a gente trocava de posição com a linha defensiva. Numa dessas, eu tinha que passar por dois colegas muito mais fortes que eu para poder sacar o quarterback. Naquele dia choveu muito e trocamos o campo de grama por uma quadra de grama sintética. Bolei uma estratégia que deu certo e lá fui eu, babando em direção ao QB para derrubá-lo. Estava quase em cima dele e fui empurrado. Tropecei em alguém e caí, sem capacete, de cabeça no chão. Uma pancada seca. Mas a concussão foi forte e o barulho da pancada parecia um disco arranhado. Eu havia deixado o capacete frouxo. Deu tudo certo. Mas é preciso ter cuidado!” conta.


O FUTURO

Foto: Divulgação
Os jogadores não perdem as esperanças de um futuro melhor para a Seleção e para o esporte no país. “Acredito que vamos ter uma grande repercussão no Mundial e podemos atrair mais atenção da mídia e de patrocinadores para o esporte no país. Assim, vamos ter um alcance maior e conseguir ensinar o grande público que muitas vezes também rejeita o esporte por não entender” afirma Martire.

Para Dhiego, a popularidade dos times nacionais de futebol americano só chegará com uma melhor organização e valorização. “Algumas federações já apresentam um trabalho incrível, mas acho que tinha que ser padrão. Um só torneio nacional, todo mundo junto trabalhando no crescimento do esporte” pondera.

O que mais motiva os guerreiros do futebol americano a superar todos os desafios, é uma tentativa de mudar esse chavão criado em torno do esporte e fazer com que as próximas gerações tenham um olhar diferente, muito mais próspero sobre a modalidade em solo brasileiro.


No que depender de Ronei, isso acontecerá. Ele, desde muito cedo, incentiva a filha Laura a acompanhar o esporte. “Tenho um amigão, que mora nos EUA, e mandou uma mini jersey para dar de presente para a minha filha de 8 meses (na época, hoje, 1 ano e 1 mês). Para que ela usasse no Superbowl XLIX. Eu estava tenso e aquilo me acalmou” conta ele, torcedor fanático do New England Patriots.
 
Ronei e a filha Laura. (Foto: arquivo pessoal)
Em 2015, a geração pioneira do Brasil Onças lançou uma semente, que daqui a alguns anos crescerá e dará belos frutos, que poderão ser colhidos pela geração da pequena Laura, e ajudarão a fixar o futebol americano no cenário nacional.

Somos brasileiros e não desistimos nunca. Jamais deixem de acreditar nesse esporte que tanto cresce no país. A torcida e o apoio de vocês é nosso combustível. Jogo por vocês!” afirmou Dhiego Taylor.

Quero agradecer a todo o apoio que estamos recebendo, por mensagens, apoio financeiro em vaquinhas, comprando rifas. Gente que nunca vi na vida querendo me ajudar, isso é algo que nunca vou esquecer. E posso garantir para todos os brasileiros que vamos levar tudo isso para dentro de campo. Vamos dar o nosso melhor para representar esta nação” disse o quarterback Ramon Martire.


#FILHOTEUNÃOFOGEALUTA

Janaína Wille | @janainawille

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6 Comentários

  1. Excelente matéria. Muito bom ver os jovens valorizando o esporte nacional.

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  2. A realidade do futebol americano não é das melhores, mas nossos heróis estão preparados e ainda nos trarão muitas alegrias. Muito bom o seu texto e continue escrevendo sobre o assunto, a divulgação do esporte é de suma importância.

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    1. Faço minhas as suas palavras. Continue acompanhando o trabalho da equipe do Linha de Fundo, aqui nós damos destaque para todos os esportes :)

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  3. Excelente matéria, parabéns, gostei, muito boa, realmente legal essa matéria, ótimo trabalho, é cativante ler essa matéria, parabéns, muito legal.

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