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Linha de Fundo Entrevista: André Kfouri


André Kfouri no auditório da Livraria Saraiva do  Shopping Center Norte, local do evento de lançamento de Pep Guardiola: A Evolução (Foto: Deividi Correa/ Mellyssa Fotografia)



No dia 15 de agosto a Editora Grande Área, em evento na Livraria Saraiva do Shopping Center Norte, lançou seu mais recente título: Pep Guardiola: A Evolução, de autoria do espanhol Martí Perarnau. O livro é continuação do consagrado Guardiola Confidencial, no original “Herr Pep”, publicado originalmente em 2014. Na primeira obra Perarnau relata todo o primeiro ano de trabalho do treinador catalão no Bayern de Munique, mostrando uma figura ainda desconhecida de grande parte do público. Foi um sucesso absoluto. E foi também o propulsor da trajetória da Editora Grande Área no Brasil, fundada em 2015 justamente com o lançamento do livro, já traduzido para o português.

Hoje, com dois anos de uma breve e promissora história, a editora conta em seu quadro com André Kfouri, jornalista dos canais ESPN, como seu editor e “embaixador”. E no caso de Pep Guardiola: A Evolução, é também de André a tradução em português da obra original lançada em 2016 como Pep Guardiola: La Metamorfosis. E neste 15 de agosto, uma hora antes do início do evento no auditório da Livraria Saraiva que contaria com a mediação do próprio André Kfouri junto ao também jornalista Carlos Eduardo Mansur, autor do posfácio do livro, ele me aguardava para uma entrevista sobre o novo título da editora, suas impressões da obra, como foi seu processo de tradução e até mesmo as diferenças percebidas ao se traduzir textos de idiomas diferentes (é dele também a tradução de “A Pirâmide Invertida”, icônica obra do inglês Jonathan Wilson, considerada uma espécie de “bíblia da tática futebolística”, trazida ao Brasil no idioma português por outra iniciativa da Editora Grande Área).
Simpático e extremamente articulado, André Kfouri também se dispôs a contar um pouco de sua carreira, evolução profissional, episódios marcantes na profissão e análise do atual mercado de trabalho no jornalismo esportivo, em uma entrevista dividida em duas partes. Confira:

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Literatura futebolística: a evolução

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(Foto: Deividi Correa/ Mellyssa Fotografia)


Entre as missões da Grande Área, entre os objetivos que ela tem, há um principal: que é o aperfeiçoamento do debate futebolístico no Brasil, em conceitos, em ideias, em visões e em práticas.” André Kfouri, jornalista e editor da Grande Área

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A Editora Grande Área, surgida em 2015, trilha um caminho ainda pouco explorado no país: a literatura futebolística. Com sete títulos lançados desde então, ela vem aprendendo e evoluindo junto com suas próprias realizações, apurando o gosto do público, ao mesmo tempo em que não deixa de acreditar em sua proposta principal, que é aprofundar o debate do futebol no Brasil.
Em resposta por e-mail, a editora afirma que, no início, o conhecimento do mercado que encarariam era raso, e foi analisando o impacto de seus produtos que eles sentiram uma evolução na comunicação com seu leitor e uma maior segurança nos desafios que enfrentam e continuarão enfrentando em sua trajetória editorial, que é independente dos grandes canais e agentes do mercado.
Esse assunto foi apenas o pontapé inicial de uma ótima conversa com André Kfouri sobre tudo relacionado ao livro, a editora e ao jornalismo que você lerá agora:

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Em Guardiola Confidencial Martí Perarnau cita o conceito do Guardiola de IDEIA, de IDIOMA e de PESSOAS, que é o método que ele usa para poder implantar seu estilo de jogo. Então, transportando isso para a editora, de que maneira em Pep Guardiola: A Evolução vocês perpetuam a sua  ideia, de que maneira vocês se comunicam com o leitor por meio desse novo livro e como você acha que isso vai afetar essas pessoas?

O que une a Editora Grande Área ao Guardiola Confidencial é o fato da Editora ter sido lançada junto ao livro, ou seja, a Grande Área passa a existir por causa do Guardiola Confidencial. Foi o primeiro livro cujo os direitos foram adquiridos por uma editora que ainda não existia, era só um plano, existia apenas na cabeça dos sócios. E é importante ficar claro que entre as missões da Grande Área, entre os objetivos que ela tem, há um principal: que é o aperfeiçoamento do debate futebolístico no Brasil, em conceitos, em ideias, em visões e em práticas. Deste modo, a escolha por títulos publicados em outros países, onde o debate futebolístico está muito mais avançado do que o que nós temos aqui no nosso país é uma escolha evidente que permite que, ao traduzir esses títulos para o português, o conhecimento seja difundido de uma maneira óbvia e lógica aqui no mercado brasileiro, porque se você não faz a tradução você está comprometendo exatamente aquilo que deveria ser o seu objetivo principal. Então o segundo livro do Martí Perarnau se tornou obrigatório para a Grande Área trazer para o Brasil porque ele não deixa de ser uma sequência. Apesar de ter outro nome e outro foco, ele não deixa de ser uma sequência porque ele pega o segundo e terceiro anos na Alemanha, tenta explicar uma série de coisas que aconteceram, tanto no futebol alemão quanto na cabeça no Guardiola, e também tenta explicar o porque ele tomou o caminho de sair da Alemanha e trabalhar na Inglaterra. Os livros do Marti Perarnau a respeito de um treinador icônico do futebol mundial ajudam, e muito, o trabalho da Grande Área de tentar qualificar o debate sobre futebol no Brasil. Mas isso não deve ser confundido como um estilo que a Grande Área escolheu, uma proposta de um determinado tipo de futebol. A questão não é essa, a questão é avançar no debate. A Grande Área pretende fazer lançamentos no futuro baseados em outros treinadores, em outras ideias, em outras maneiras de enxergar o jogo. Mas sempre com a mesma tarefa, que é melhorar esse debate.

Você vê futuro para a literatura futebolística DO Brasil e NO Brasil?

Sim, embora não seja algo simples. Não é simplesmente por uma questão de escolha que as editoras não fazem livros sobre futebol, e também não é uma questão puramente de escolha que os livros que existem sobre futebol no Brasil sejam em sua maioria, não quero fazer nenhuma generalização, livros sobre um time, sobre uma campanha específica ou autobiográficos. Eu estou me referindo sobre a necessidade de livros sobre o jogo, de livros que façam que esse debate sobre o futebol seja avançado, que vá para frente, e não apenas retratem um momento na história, ou trabalho de uma comissão técnica. Muito comum um time ser campeão e sair um livro sobre aquele campeonato com bastidores, mas que não são bastidores muito profundos, com ideias, mas não de uma forma que faça com que essas ideias sejam transmitidas de uma maneira correta, então são livros superficiais, digamos assim. Eu acho que isso precisa mudar, e a Grande Área surgiu para ajudar nessa transformação, e eu entendo que, embora eu não possa te dar um prazo ou um cronograma, entendo que vai ser inevitável que essa questão sobre trazer títulos de fora, escritos em outros países continue, porém também paralelamente a um trabalho de lançamento de autores nacionais que tenham mais a ver com a nossa realidade.

Você chegou a falar no começo da entrevista que Pep Guardiola: A Evolução tem uma abordagem diferente, e é verdade. Em Guardiola Confidencial ele usa uma espécie de diário de bordo. Ele vai falando, dia após dia, como que o Guardiola vai desenvolvendo o seu trabalho. Já em Pep Guardiola: A Evolução ele usa alguns recursos como notas, bastidores e até incentiva o leitor a não seguir uma leitura linear. Só que você colocou no seu prefácio que esse livro fala mais de Pep do que de Guardiola. O primeiro livro chama Guardiola Confidencial, mas a impressão que ficou é desse paradoxo, de que o segundo vai mais profundo em Pep Guardiola do que o primeiro.

Pois é, é curioso isso. O primeiro livro tem um mérito tremendo que é apresentar para o mundo um treinador que o mundo não conhece. Que o mundo acha que conhece, mas não conhece. Até aquelas pessoas que entendiam que conheciam o Pep Guardiola técnico, em relação a como ele vê o jogo de futebol, se surpreenderam com o lançamento do livro, e eu estou falando disso no mundo inteiro, porque o livro mostrou para eles uma série de coisas que essas pessoas não conheciam que são a realidade, são a maneira orgânica deste treinador pensar. Para o segundo a tarefa é mais complicada ainda porque esse fator desconhecido, o ineditismo de apresentar pro público alguém que o público desconhece, não existe mais. O primeiro livro fez esse trabalho, e você tem que manter a qualidade, você tem que manter a atenção. Então o que eu acho que Martí Perarnau fez no primeiro livro? Pegou o Pep Guardiola e mostrou ele pras pessoas. No segundo livro trouxe as pessoas para dentro do Pep Guardiola, é uma viagem inversa. E é mais pessoal, porque tem muito de divisão de mundo, tem muito de personalidade, tem muito da vida, sempre caminhando junto com o jogo. Mas não é só jogo, não é só futebol. É um livro mais humano do que o primeiro, e que tem o mérito de não só manter o nível de atenção das pessoas, o nível de interesse, o nível de curiosidade, porque se nota logo no início que não é um livro como o primeiro, mas mostra um mundo que também está aí para ser mostrado. Eu tenho convicção que a decisão de lançar o segundo livro tem a ver com todas essas transformações que aconteceram, porque se elas não tivessem acontecido o livro perderia um pouco a razão de ser. Se o Pep não tivesse se transformado tanto na Alemanha, a evolução não faria sentido.

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(Foto: Deividi Correa/ Mellyssa Fotografia)

Você acha também que neste segundo livro o Perarnau foi mais Martí? Ele se aprofundou mais? Ele se revelou mais neste segundo livro?

Eu acho que sim, porque ele busca muita coisa de fora do jogo de futebol para dar esse desenho sobre a personalidade do personagem principal. Então ele fala de arte, ele fala de gastronomia, ele volta a falar de xadrez, como já tinha feito no primeiro, ele mostra uma pessoa que o primeiro livro não mostrou. Então eu entendo que o Martí Perarnau se revelou um cara mais talentoso no segundo livro. O primeiro é mais um grande furo mundial de reportagem, já no segundo ele conseguiu se envolver mais. As pessoas que já leram os dois me perguntam de qual eu gosto mais e eu tenho dificuldade de dizer qual, mas eu acho que eu gosto ainda mais do segundo.

Você é jornalista, apresentador, autor… e tradutor. Eu queria que você explicasse um pouco mais desse detalhe da tradução, porque primeiro você traduziu o Pirâmide Invertida de um autor inglês (Jonathan Wilson), e agora de um autor espanhol. Qual é a diferença de tradução nesses dois idiomas e o que você achou mais interessante nesse processo?

Tem uma diferença muito grande que é a estruturação da linguagem. As frases, as sentenças em inglês, elas têm a ordem invertida em relação ao português e ao espanhol, então já existe um grande complicador para traduzir o inglês em relação a traduzir o espanhol. A tradução do espanhol é mais lógica, ela é mais sequencial. Ela não é mais fácil, ela é menos complicada, digamos assim, porque você não está em nenhum momento traduzindo palavra por palavra, nem frase por frase, você está traduzindo ideias. Essa é a sua tarefa principal, sua missão é essa. O problema é que você não pode, e eu fiz questão de evitar esse risco ao máximo, especialmente na Pirâmide Invertida, se apoderar do estilo original, você não pode tomar do autor o jeito de escrever só porque o livro vai ser publicado em outra linguagem, em outro idioma. Você tem que fazer o possível para manter isso. E o Jonathan Wilson, que é o autor britânico de A Pirâmide Invertida, tem uma maneira muito peculiar de escrever, ele é um cara de sentenças longas, ele é um cara de pontos e vírgulas, e determinadas estruturas não funcionam em português, então você tem que quebrar uma longa sentença em três, em duas. E eu fui obrigado a fazer isso por uma questão de obediência às regras do português, e também para tornar a leitura mais agradável para as pessoas. Mas eu fiz o máximo possível para não alterar a prosa do autor. Em relação a tradução de Pep Guardiola: A Evolução, eu tive menos tempo para fazer. Eu tive entre 6 e 8 meses para fazer A Pirâmide e não tive 5 meses para fazer o segundo Perarnau sobre o Pep, mas foi também um pouco mais simples porque eu já tinha a experiência da Pirâmide Invertida, então eu conseguia já dimensionar o trabalho de uma outra maneira. Mas em ambos os casos, como sou casado, tenho duas filhas, só consegui trabalhar no momento em que a minha casa estava em absoluto silêncio. Então quando você escreve as suas próprias coisas, e eu sou colunista de jornal, tenho o hábito de escrever muito, todas as semanas, eu tenho capacidade para escrever sem que o ambiente me afete, em qualquer lugar. Já para fazer uma tradução o nível de concentração é muito maior e você se perde com muito mais facilidade, e o trabalho rende muito menos do que quando você está escrevendo da sua cabeça. Então é um trabalho longo, um trabalho demorado e custa, mas vale muito a pena.

Estes livros sobre Guardiola falam de futebol, mas obviamente não só de futebol. Também falam da gestão, do processo criativo do treinador espanhol. Na sua opinião, um jornalista esportivo ou um leitor que é amante do futebol pode aprender o que para a vida dele lendo os dois livros sobre Pep Guardiola e, em especial, este segundo?

Primeiro que ele vai adquirir uma quantidade de conhecimento que é notável, nos dois livros. No primeiro livro existe uma descrição dos treinamentos feitos durante toda a pré-temporada, e depois como o trabalho continuou, porque inicialmente o acordo entre eles era de cobertura só durante a pré-temporada porque não havia competição, então não havia segredos. É muito mais viável você imaginar que um clube como o Bayern de Munique vai se abrir para alguém que estará lá dentro vendo e ouvindo tudo durante um período em que não tem competição. Mas o relacionamento entre eles se desenvolveu de forma tão tranquila que o Martí Perarnau foi convidado a continuar durante a primeira temporada, desde que ele não revelasse nada do que ele sabia.
Então primeiro tem uma quantidade de conhecimento a ser transferido sobre o dia-a-dia real de um clube desse tamanho, jogadores desse nível e um técnico dessa capacidade que você não encontra em outra publicação, nem acompanhando a imprensa diária de qualquer país. Esse é o primeiro ponto. O segundo ponto, e o segundo livro é mais rico nesse aspecto, é mostrar que não existe um profissional separado da pessoa e que as experiências se fundem, as histórias se mesclam e você vai se formando ao mesmo tempo em que as coisas vão se apresentando, e isso vale para o seu dia-a-dia profissional, para as pessoas com quem você trabalha de um ano para o outro, aquilo que você consegue acumular de experiência no que você considera o seu trabalho e naquilo que você não sabe que existe em relação a este mesmo trabalho, que é a quantidade de conhecimento, de experiências que você observa no outro. Trabalho em equipe tem muito disso, ninguém faz nada sozinho no futebol, e as pessoas são aquilo que o ambiente proporciona que sejam, e esse ambiente é muito mais coletivo do que a gente pode imaginar. O segundo livro é uma lição nesse caminho também.

Você já afirmou em entrevistas a máxima de que para escrever bem tem que ler bem, que é importante gostar de ler. Aproveitando o lançamento deste livro, fale um pouco mais sobre essa importância para a profissão do jornalista.

Na realidade, começando bem lá do início, para você conseguir chegar ao ponto em que você se sente mesmo autor de um determinado estilo, de trabalhar com as palavras, você precisa ter consumido muitas palavras antes. E tem uma coisa legal, o Guardiola se confessa um “ladrão de ideias”. Ele diz e confessa, fala abertamente que tudo o que ele faz ele foi pegando um pouquinho dos outros, com jogadores com quem ele jogou, com técnicos com quem ele trabalhou. O segundo livro é rico nisso, de escritores, cineastas. Ele é muito amigo e conversa com muita gente de fora do futebol, ele absorve coisas de muitas modalidades diferentes, que ele acha que tem facetas que podem ser utilizadas no futebol, que é uma coisa que muita gente pensa mas pouca gente faz. Então o cara é uma esponja! Porque a atividade dele permite que você seja assim: olhar para o máximo, ouvir o máximo, sentir o cheiro e ir no fundo armazenando tudo. Para trabalhar como jornalista isso é ainda mais importante, porque para cada texto que você escreve tem visão de mundo, tem objetivo, tem o que você acha que é certo e errado, tem valor, tem princípio, tem informação. E quando você não sabe de algum assunto, a única coisa que você tem que fazer é perguntar para quem sabe e reproduzir.

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André Kfouri “confidencial”

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(Foto: Deividi Correa/ Mellyssa Fotografia)

Eu ouvi muito quando eu estava começando que para o profissional, para a pessoa talentosa, capaz e obstinada sempre haveria lugar, e eu continuo acreditando nisso.André Kfouri, jornalista e editor da Grande Área

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Nascido em 14 de setembro de 1973, André Kfouri, 44 anos, já dedicou mais da metade de sua vida a profissão. Desde 1993, como radioescuta da Jovem Pan, até ser contratado pela ESPN em 1995, onde ainda trabalha, André, como costuma acontecer com todo profissional da área, já trabalhou nas mais variadas funções na profissão. Antes mesmo de entrar na equipe de esportes da Jovem Pan, cobriu trânsito e estradas para o veículo radiofônico. Depois, já na ESPN, canal especializado nos esportes, chegou como repórter e apresentador do “Abre o Jogo”, trilhando a partir daí carreira respeitada, tendo coberto Olimpíadas, Champions League, Super Bowl e até mesmo os dois títulos de Gustavo Kuerten no Roland Garros, em 1997 e 2000.
Mas essa é, digamos, a narrativa oficial de sua contribuição ao jornalismo esportivo.
Antes de tudo isso, o ainda garoto André já vivia espontaneamente no meio jornalístico frequentando, por exemplo, a redação da Placar onde seu pai, Juca Kfouri, era diretor de redação. E foi lá, em um final de semana de setembro de 1985, que um então adolescente André Kfouri salvou toda a redação de um branco criativo, sugerindo uma sagaz manchete sobre o retorno de um histórico volante brasileiro ao futebol do país, vestindo as cores do tricolor paulista.

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(Foto: Reprodução do site “Efemérides do Éfemello”)

Hoje, depois de tantos anos, ele diminui esse fato inusitado que, de alguma forma, foi sua primeira oportunidade de experimentar uma profissão que ele já admirava, embora, como ele esclareça, ainda não soubesse exatamente o que queria fazer naquela altura da vida.
Sem pretensão de ser tão “confidencial” como o livro de Perarnau, aqui podemos conhecer um pouquinho mais de André Kfouri em relação a sua profissão, como ele equilibra seu dia-a-dia de jornalista com o de pai de duas filhas, como ele enxerga o próprio jornalismo em relação às inovações tecnológicas, o momento de crise econômica, e o que ele vê como diferencial para quem quer ingressar nessa área:

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Falando sobre você agora, a frase “São Paulo Roberto Falcão” é a sua maior sacada até hoje? (risos)

(Risos) Ah, cara, isso porque se tornou público…

...ela por acaso se tornou inconscientemente seu “click” para virar jornalista? Porque você era novo…

...eu era, eu era. E foi uma coisa que surgiu... assim... eu diminuo a importância disso, entendeu? Já naquela época eu estava encantado com futebol, com Copa do Mundo, com jogadores, com ver jogo, com ir a estádio. Não tinha tomado, claro, nenhuma decisão ainda, mas eu entendo que eu já tinha o meu caminho, e isso me reforçou. Mas não é nada mais do que isso.

Houve até um diálogo marcante com seu pai, que ele contou em entrevista, quando você não passou no vestibular para direito e admitiu para ele a sua paixão pelo jornalismo.

É. Eu queria fazer direito porque a faculdade de direito é mais rica, mais densa, em leitura também, do que a faculdade de jornalismo. Mas já havia na época a discussão sobre a obrigatoriedade do diploma, eu não queria enfrentar esse problema depois que eu já estivesse trabalhando, e se transformasse numa situação em que eu teria que “Ah, agora eu vou ter que dar um jeito de me formar (academicamente falando)”, então eu não quis correr o risco.

Enquanto você respondia sobre seu processo de tradução, você resvalou no assunto da relação familiar, que a sua casa precisa de silêncio pra você trabalhar. Há também um episódio que você já contou em uma entrevista sobre quando você viajou para cobrir a Copa na Alemanha, e em um determinado dia sentiu tanta falta da família que até se trancou em um banheiro para chorar, mas depois seguiu com seu trabalho. Seu pai, Juca Kfouri, diz que não costuma aceitar convite de nada no sábado, porque ele quer ficar com as netinhas. Disso tudo, como que você lida com a sua demanda profissional e familiar de uma maneira que você se sinta pleno nas duas áreas?

Isso é muito difícil, porque você tem sempre a sensação de que não é suficiente, então faz mais ou menos sete ou oito anos que eu deixei de trabalhar como repórter diariamente. Ainda faço reportagens para televisão, ainda vou conversar muito com as pessoas por causa do meu trabalho como colunista, eu gosto de estar com as pessoas e frequentar os lugares. Mas eu não tenho mais como, até pela natureza do meu trabalho como apresentador, fazer isso com a frequência e com o tempo que eu gostaria. Ao mesmo tempo isso me permite estar mais em casa, e me permite construir uma rotina em casa que é mais calorosa e mais presente com as minhas filhas e com a minha mulher. A gente vive sempre buscando esse equilíbrio. Nesse momento da minha vida e da minha carreira eu encontrei essa “mistura”. Mas é difícil porque o futebol te consome demais, independente do tipo de rotina que você tenha, então o domingo, por exemplo, é um dia de trabalho, sempre. Um aniversário? Esquece. Uma apresentação da filha na escola? Não dá (dependendo do horário, talvez). Ao mesmo tempo, mesmo aquelas profissões que respeitam o período de segunda a sexta não são absolutamente tranquilas em relação a o que é obrigação e o que é família, e quando essas duas situações se confundem você se sente perdendo alguma coisa. O que eu não queria em nenhum momento e felizmente nunca passei por isso é ter a sensação de, por exemplo, eu não estou sendo dramático, mas “não ver minhas filhas crescerem”. Não, cara! Mesmo quando eu trabalhava como repórter eu vi minhas filhas crescerem. Cobri Copas e fiquei 50 dias fora, sofri, porque não tem como você passar por isso sem sofrer, sabia que com crianças pequenas eu ia sair e elas estariam de um jeito, quando eu voltasse elas estariam de outro, mas isso não significa que eu não as vi, que eu não as acompanhei. Então é uma perene busca por esse equilíbrio e o importante é você não sofrer além daquilo que você acha que está no pacote. Quando você acha que foge do pacote talvez seja necessário você fazer alguma correção.

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Desde 1999, André Kfouri é um dos âncoras do SportsCenter, jornal de notícias esportivas da ESPN que se destaca tanto pela credibilidade quanto pela irreverência. Neste print de 2015, por exemplo, duas versões do próprio André Kfouri chamam os destaques da edição do dia, para compensar a “falta” de Fernando Nardini, que sairia de férias no dia seguinte e não participou da divertida chamada que você pode conferir aqui


Eu poderia falar sobre grandes conquistas, grandes realizações, porque você com certeza deve ser um cara muito realizado naquilo que você faz. Mas o que eu queria perguntar é se você ainda tem um sonho.

No início, quando você começa a trabalhar com esporte, as coisas vão acontecendo, e seus sonhos são muito óbvios: você quer estar em uma Copa do Mundo, numa Olimpíada, você gosta muito de uma determinada modalidade esportiva e você quer estar na competição que significa o auge dela. E eu tive muita sorte, privilégio mesmo, de estar na ESPN no momento em que essas coisas todas eram viáveis, possíveis, e a empresa tinha como prioridade cobrir esses eventos in loco e mandar equipes a todas essas competições. Então esse negócio de você dizer “Ah, quero fazer isso!”, de certa maneira aquelas competições que eu tive como um Santo Graal, digamos assim, eu felizmente consegui estar presente em algumas delas mais de uma vez. Hoje, o que eu gostaria em relação ao que pode-se chamar de sonho é que a profissão voltasse a se aquecer, o mercado voltasse a se abrir, a gente não passasse por tantas e tantas situações de redações diminuindo a cada ano, substituição de mão de obra, pouca condição de receber pessoas novas com condição de dar a elas um caminho no qual elas possam investir. Mas isso tem a ver com crise no país, tem a ver com economia, tem a ver com vários outros mercados que estão passando pelo mesmo tipo de problema, tem a ver com um processo de transformação da própria profissão, de todas as profissões que lidam com comunicação. O que eu realmente tenho como um sonho é ser participante de uma realidade profissional melhor do que a que a gente tem hoje.

Eu já vi você falando sobre internet em entrevista, e você tem uma visão um pouco mais otimista do que a média na sua área. Você não vê como um bicho papão, você vê como uma ferramenta. Você acha que de lá para cá o jornalista conseguiu mais autonomia na internet ou você ainda acha que muita gente não consegue evoluir?

A razão da minha simpatia e dessa visão que você disse, e eu concordo, que é um pouco mais otimista do que a que tem por aí é que a internet basicamente mostrou que existe um mundo distinto para a gente fazer o que a gente faz, ou seja, chegar às pessoas com notícias, análises, gráficos, vídeos, textos pequenos, textos longos. É isso. Ela está aí para NÓS moldarmos o trabalho. Ela não mexe com O PROFISSIONAL, ela mexe com A PROFISSÃO. Ela não mexe com o profissional no sentido de descartar esse ou aquele, mas ela exige mudanças, ela exige adaptações, ela privilegia aqueles que perceberam isso antes e com mais naturalidade. Ela não pega o que existe e joga no lixo, ela não exclui, embora a impressão que a gente tenha hoje é que o funil está ficando cada vez menor e só existe um determinado jeito de trabalhar, o que não é verdade, é só uma impressão. Eu entendo que jornalistas são necessários e serão, a forma de exercer a profissão é que está em constante transformação já há muito tempo e eu acho que ainda vai continuar. Mas eu não tenho medo da internet, pelo contrário, eu já percebi tudo que a internet fez em trabalho de reportagem em televisão, por exemplo, e são maravilhas espetaculares! Coberturas internacionais que dependiam de satélite, hoje são feitas com internet. E a qualidade do material que chega é a mesma. E uma transmissão por satélite custa os olhos da cara, e uma transmissão por internet custa um computador, uma boa câmera e um programa.

Percebo que muitas revelações do jornalismo começaram por conta, abrindo mão do salário, para poder ter experiência, portfólio. Esse é um caminho viável?

Hoje em dia tudo basicamente é assim. Estágios remunerados recebem esse nome só por formalidade, porque a remuneração realmente é quase insignificante, mas pelo menos é um estágio, é uma possibilidade de aprender, é uma oportunidade de começar, de mostrar que você merece prosseguir. Isso é o mais difícil hoje. O primeiro passo é o mais complicado hoje na carreira profissional. Por isso que eu digo, quanto mais olhares diferentes você apresentar, mais chance você vai ter, mais possibilidades você vai conseguir galgar. Mas infelizmente é difícil, é cada vez mais difícil.


Por fim, essa é uma pergunta que já deve ter sido feita para jornalistas a maior parte das vezes, sobre quem quer trabalhar na área, quem gosta de futebol e pretende seguir, por exemplo, o caminho de pessoas como você. Muito se fala em talento, determinação, paixão… isso parece que é o necessário, que é o básico, mas qual seria O DIFERENCIAL para essas pessoas?

Eu acho que eles continuam sendo os mesmos diferenciais de quando eu entrei no mercado: outras habilidades! Eu quero frisar, o mercado do jornalismo está muito menor, muito mais exigente e muito mais competitivo do que há vinte e poucos anos quando eu comecei. Existem menos oportunidades, as oportunidades são menos recompensadoras e o caminho é mais difícil. Mas, como eu te disse anteriormente, isso tem a ver principalmente com as condições econômicas do país. Eu ouvi muito quando eu estava começando que para o profissional, para a pessoa talentosa, capaz e obstinada sempre haveria lugar, e eu continuo acreditando nisso. E também contam as habilidades, aquilo que você oferece além do que os outros “competidores” podem oferecer. Quando eu comecei a trabalhar o inglês já não era um diferencial, era praticamente uma obrigação, e hoje ele é uma obrigação. Outros idiomas é que fazem a diferença. O cara que põe lá só inglês e português está numa situação difícil. Quaisquer outras habilidades que a pessoa possa ter a apresentar, uma visão particular de como o trabalho deve ser feito, aquilo que essa pessoa vai agregar quando fizer uma reportagem, ou seja, se você tiver investido em você mesmo como pessoa você já está em vantagem em relação a quem não fez isso infelizmente porque não pode fazer.

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