Para os estatísticos, uma
amostragem ideal é aquela que representa em sua totalidade o público que se quer atingir. Ainda que não seja possível que uma estimativa dê conta de todas
as variáveis, fato é que amostras podem ser mais ou menos precisas, na medida em
que elas são, ou não, um recorte do conjunto abordado. Tecnicismos à parte,
algumas vezes já foi abordado como o futebol é a amostragem perfeita da
sociedade. E é nessa abordagem que estudiosos de futebol, e de política, apontam o
seguinte: o esporte é, com evidência, um lugar de disseminação de
problemas sociais.
Já no princípio do Football,
os cidadãos ingleses extravasavam nas partidas. Aquela etiqueta da civilização
parecia ir embora com o afloramento dos nervos – com o apito do início da
partida. Os cidadãos agora não eram mais cidadãos, eram torcedores, fanáticos.
E é aqui que a nossa história de amor começa.
A literatura esportiva
inglesa, há muito tempo, já documentou: em meados do século XIX, com o
surgimento do futebol, o casamento ocorreu quase instantaneamente. Segundo os
registros, o esporte foi estimulado entre trabalhadores para ocupar suas
cabeças em tempos ociosos – era, também, uma estratégia para desvirtuá-los de
quaisquer ideias revolucionárias. Os grandes industriais, porém, parecem ter
ganho apreço pelo esporte; paralelamente, eles também começaram a praticá-lo. Numa
crônica de época, encontra-se um empresário afirmando que jamais poderiam os de
sua classe se misturar aos sujos trabalhadores. A lógica aí é da discriminação
de classe – mas muito, muito similar à racista, que seria observada lá mesmo,
como em tantos lugares do globo.
No Brasil, herdeiro de
uma escravidão devastadora, o racismo sempre foi protagonista. E no futebol,
aquele nosso microcosmo, não seria diferente – é vasta a documentação de casos
racistas no país. Quando da derrota para o Uruguai, em casa, na final da Copa
de 50, uma das causas apontadas seria a mestiçagem do brasileiro, não párea
para o sangue “mais europeu” do país platino. Esse tipo de discurso se repete:
em 1954, novo fracasso em Copas do Mundo; supostamente, a miscigenação seria causa
de insuficiência psicológica do jogador brasileiro, que por isso não se daria
com grandes competições.
Reflexo da sociedade,
reflexo do mundo. A negritude do futebol brasileiro – que encontra grandes
expressões em Pelé, Garrincha, Didi, Carlos Alberto Torres, Romário e tantos
outros – foi vítima internacional do preconceito. Eliminado pela Itália na Copa
de 1938, Benito Mussolini saldou o resultado como o triunfo da raça pura sobre
os impuros. Nada, porém, que fosse novo sob o sol. Desde antes disso, os brasileiros
eram chamados de “macacos” pelos seus vizinhos argentinos – até a década de 90,
inclusive, viam-se capas de revistas esportivas do país utilizando este termo.
De fato, é um amor
duradouro. Não parece ter se desapegado desde seus tempos primevos, lá no
século XIX, até hoje. Mas é interessante se apegar a um detalhe, uma sutileza
de profunda hipocrisia: o racismo no futebol não deixa de ser um fenômeno estranhamente
seletivo. O mesmo torcedor que chama um jogador adversário negro de macaco aplaude
quando outro, agora vestindo a camisa de seu time, marca um gol. É uma velha
lógica pueril – é como se fosse o meu jogador protegido, e o outro merecesse.
Afinal, aquele é só um negro; e este, bem, este é o meu negro. É, praticamente,
um paternalismo escravocrata, só que reeditado para os estádios de futebol.
Para citar mais um
exemplo, a França deve suas duas copas do mundo a uma série de jogadores negros
– indo mais fundo, a imigrantes e descendentes de imigrantes. Os torcedores Bleus
foram ao êxtase quando o argelino Zinedine Zidane segurou a batuta e
comandou a seleção, com Thuram, Desailly e alguns outros, na inédita conquista
do mundial (em 1998). Mbappé, Umtiti, Pogba e companhia, no ano de 2018, lhes
renderiam o segundo trunfo.
Mas, mais uma vez, esses
daí são os meus. Quando um negro põe os pés no campeonato francês, mas vestindo
as cores do adversário, o que tenho a ver? A Ligue 1 é, e não é de
hoje, uma das grandes recordistas de casos de racismo no futebol europeu.
Mudam-se os tempos, mas talvez
não tanto a mentalidade. Koulibaly, dos melhores zagueiros do mundo hoje, foi
vítima de racismo numerosas vezes no italiano, só na última temporada. Carlo Ancelotti,
então técnico do time, chegou a afirmar que teria que tirar seu time do
estádio, uma vez que a federação nada fazia. Sterling, em partidas oficiais e
amistosos, pelo City e pela seleção inglesa, foi outra vítima. Balotelli chutou
a bola na torcida que lhe provocava, em jogo válido pela Série A. Na mesma
linha, Taison não se acovardou quando a parte rival da torcida ucraniana começou
a xingá-lo. Um mês depois, ele seria eleito o melhor jogador do campeonato
ucraniano, calando a boca de alguns racistas no país.
Os casos, antigos e
atuais, como se pode ver, não são poucos. A compreensão, porém, não deixa de
ser simples: enquanto espaço de convívio, inserido no contexto de uma cultura,
é mais do que natural que as convenções de conduta do futebol expressem as
normas – evidentes e veladas – da mesma. Sendo esta cultura baseada em
relações de poder essencialmente racistas, o futebol será um espaço em que
estas concepções se replicarão indefinidamente, enquanto na sociedade perdurarem.
Até que se cortem as
amarras dessa estrutura, as palavras de Romelu Lukaku seguirão a regra. Em
carta aberta publicada pelo The Players Tribune, o jogador escreveu: “Quando
as coisas estavam caminhando bem, eles me chamavam de Romelu Lukaku, o atacante
belga. Quando as coisas não estavam bem, eles me chamavam de Romelu Lukaku, o
atacante belga de origem congolesa”.
No futebol, é comum que
se combata o racismo com medidas punitivas. Pode não ser o bastante, mas certamente
tem seu valor. O esporte pode, inclusive, ser um vetor para a conscientização:
o futebol pode, ainda que com dificuldade, tocar algumas consciências
individuais sobre a imbecilidade das manifestações racistas em estádios. O
micro e o macro, afinal, sempre foram uma via de mão dupla. Mas óbvio: essas são
medidas de curto prazo; para o longo, a resposta é a educação, o combate ao
fruto podre pela sua raíz.
Tantas vezes mancha no
esporte mais popular do planeta, o racismo não pode mais passar impune.
Inúmeras vezes passou, mas em outros tempos. Em novos tempos, exigem-se medidas
inéditas: vista grossa, crítica atuante... e divórcio.
1 Comentários
Muito bom!! Parabéns!
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