Quando o Brasil voltou da
SuĂça, em 1954, com mais um fracasso em Copas do Mundo, uma das muitas teses
racistas sobre o povo brasileiro começou a circular. Tratava-se da ideia de que
a mestiçagem do jogador brasileiro era a causa de sua insuficiĂªncia
psicolĂ³gica. Este fator, hoje tido como absurdo, explicaria o porquĂª de os
habilidosos jogadores brasileiros terem desempenhos ruins em grandes
competições como a Copa do Mundo.
Quatro anos antes, em
1950, a seleĂ§Ă£o brasileira chegara em sua primeira final de Copas. Na situaĂ§Ă£o,
ela foi derrotada pela tradicional equipe uruguaia. Longe de ter sido um
episĂ³dio futebolĂstico isolado, o acontecimento teve reverberações no plano psicossocial:
Nelson Rodrigues, como sempre cirĂºrgico em seus comentĂ¡rios, afirmou que o
ocorrido gerou no povo brasileiro o famigerado “complexo de vira-lata”. Tal
fenĂ´meno se caracterizaria por uma postura do brasileiro, segundo a qual este se
colocaria em posiĂ§Ă£o de inferioridade em relaĂ§Ă£o ao resto do mundo.
Tal complexo,
evidentemente, seria observado na ediĂ§Ă£o seguinte da Copa do Mundo, quando muitos
brasileiros adeririam Ă tese racista em questĂ£o.
Em 1958, porém, o Brasil
lograria seu primeiro tĂtulo de campeĂ£o mundial. A perspectiva de inferioridade
seria entĂ£o substituĂda, ao menos brevemente, pelo seu extremo oposto. A
mĂºsica-tema da conquista do tĂtulo, por exemplo, explicitava o orgulho de ser
brasileiro: “A taça do mundo Ă© nossa/Com brasileiro, nĂ£o hĂ¡ quem possa”. Da
Ă¡gua pro vinho, o jogador brasileiro, e mesmo os sĂmbolos do paĂs, eram entĂ£o
exaltados: “O brasileiro lĂ¡ no estrangeiro/Mostrou o futebol como Ă© que
Ă©/Ganhou a taça do mundo/Sambando com a bola no pĂ©”, como seguia a mesma
mĂºsica.
Mas, para além do plano
do futebol, quais sĂ£o os orgulhos nacionais do brasileiro? PoderĂamos dizer,
como de fato o Ă©, que o Brasil Ă© a terra de manifestações artĂsticas –
literĂ¡rias e musicais, por exemplo – de extrema qualidade estĂ©tica. E nĂ£o
estarĂamos errados. PorĂ©m, isso nĂ£o quer dizer que o brasileiro se orgulha de
sua cultura; na realidade, ele simplesmente nĂ£o possui essa memĂ³ria. Povo com baixa
noĂ§Ă£o histĂ³rica, a maior parte dos brasileiros sequer conhece o nome de Manuel
AntĂ´nio de Almeida. Quando da morte de Cauby Peixoto, em 2016, boa parte dos
cidadĂ£os do paĂs parecia desconhecer um dos maiores intĂ©rpretes dos anos
primeiros da MĂºsica Popular Brasileira. E esses sĂ£o sĂ³ dois exemplos.
Apesar de,
realisticamente, podermos exaltar a arte brasileira, seria muito romĂ¢ntico
dizer que ela Ă© um pilar do nosso sentimento de identidade nacional. Por outra
anĂ¡lise, poderĂamos dizer que nĂ£o nos orgulhamos, tambĂ©m, de nossos feitos no
campo intelectual. Em alguns casos, isso ocorre por nĂ£o termos grandes
teorizações originais, resumindo nossa obra a releituras e reinterpretações
(como Ă© o caso da teologia); em outros, por nĂ£o ter atingido expressĂ£o
internacional, apesar da relevĂ¢ncia nacional inegĂ¡vel (como Ă© o caso, por
exemplo, da sociologia). Poderia-se dizer que Paulo Freire, por sua influĂªncia,
deveria ser exaltado como sĂmbolo nacional. Mas ainda assim seria apenas um sĂmbolo.
E, pensando com pragmatismo, dificilmente isso ocorreria em um paĂs
essencialmente conservador como o Brasil.
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A histĂ³rica seleĂ§Ă£o de 70, um dos grandes sĂmbolos nacionais do paĂs |
Resta, entĂ£o, o futebol. Como sintetiza o historiador HilĂ¡rio Franco Junior, adicionando Ă anĂ¡lise a violĂªncia social, a corrupĂ§Ă£o endĂªmica, etc., “intuindo que nĂ£o hĂ¡ muita coisa de que se orgulhar, o brasileiro agarra-se a um dos poucos campos em que conseguiu reconhecimento internacional, o futebol”. Para ele, isso seria sintomĂ¡tico de um nacionalismo deficiente e insuficiente. Precisamente, o nosso caso.
Alguém poderia argumentar
que as conquistas futebolĂsticas alimentam o sentimento nacionalista de todos
os povos, nĂ£o somente do brasileiro. Isso Ă© inegĂ¡vel. PorĂ©m, o ponto Ă© que nem
todos os povos resumem seu orgulho nacional Ă s glĂ³rias esportivas. A ItĂ¡lia Ă©
um paĂs que respira futebol, mas nem por isso deixa de exaltar a incomensurĂ¡vel
gama de escritores, pintores, cineastas, cantores e demais insignes nomes da
cultura mundial que nasceram no paĂs. Inglaterra, Alemanha e Portugal (apesar
da menor expressĂ£o deste na histĂ³ria do futebol) seriam, tambĂ©m, exemplos
vĂ¡lidos. Diametralmente opostos, portanto, ao dĂ©bil nacionalismo brasileiro.
Esta dependĂªncia direta
do nacionalismo no paĂs e do futebol se observa na repercussĂ£o que as tragĂ©dias
futebolĂsticas tĂªm sobre o povo brasileiro. AtĂ© hoje, a opiniĂ£o que o cidadĂ£o mĂ©dio
tem Ă© de que a Copa de 2014 nĂ£o deveria ter ocorrido no Brasil devido ao Mineirazo (o vexaminoso Brasil 1 x 7
Alemanha). Isso demonstra uma falta de espĂrito crĂtico indescritĂvel. O mesmo
cidadĂ£o poderia ser contrĂ¡rio ao evento devido ao roubo anunciado que este
representava, ou ao desperdĂcio de dinheiro pĂºblico que fatalmente ocorreria –
e que poderia ser gasto em outras Ă¡reas. PorĂ©m, a dimensĂ£o da tragĂ©dia
futebolĂstica, ao menos no imaginĂ¡rio coletivo, foi maior do que a
socioeconĂ´mica que permeou o mesmo evento. É sintomĂ¡tico que o “7x1” tenha
ferido mais o nosso orgulho nacional que o desperdĂcio e o roubo dos cofres
pĂºblicos.
Com efeito, isso sĂ³
poderia ocorrer em um paĂs com nacionalismo dĂ©bil e cidadania frĂ¡gil. SĂ³
poderia ocorrer em um paĂs sem senso da prĂ³pria histĂ³ria, da prĂ³pria cultura,
de seu lugar no mundo. Em um paĂs de tantos possĂveis sĂmbolos nacionais
nobres, relegados ao desprezo, quando nĂ£o ao completo esquecimento. De fato, sĂ³
poderia ocorrer onde pouquĂssimos entendem que um paĂs sĂ©rio Ă© aquele que se
faz de cidadĂ£os, mais que de torcedores.
De fato, isso sĂ³ poderia
ocorrer em um paĂs com nacionalismo dĂ©bil e cidadania frĂ¡gil, como o Brasil.
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