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2020 em 90 minutos. Na Gávea, o ano maldito acaba sem terminar.


(Imagem: UOL Esporte)

Fazem seis dias que nos permitimos ser preenchidos pela auto-ilusão, ou pelo menos por aquela esperança quase esquecida, submersa nos nossos medos mais profundos de perder parentes ou de continuar vendo a vida ser aos poucos destruída pelo maior drama de nossa geração.

Mas todos sabemos que 2020 ainda não acabou, e talvez demore muito ainda para acabar. Bastaram alguns dias para que olhássemos pro mundo aí fora e a névoa parca de esperança leve foi sendo substituído por renovação dos medos de que 2021 seja verdade uma continuação do ano maldito, mas em uma versão 2.0.

Ontem, quando Bruno Henrique tropeçou sozinho no campo de ataque em uma daquelas cenas que parecem comédia boba de um palhaço de rua, o rubro-negro soube que seu 2020 continuaria.

E por algum acaso do destino, o jogo de ontem parecia querer ser alguma metáfora dos meses anteriores, quase que emitindo um aviso de sua recusa em ir embora.

O ano do Flamengo foi dividido em três atos, com três nomes diferentes.

Começamos 2020 em absoluta empolgação. Acabávamos de voltar de Tóquio (ou o ideal de uma final de Mundial) e a possibilidade de retornar era tão factível que nem parecia um clássico delírio rubro-negro. A hegemonia era vista no horizonte e os primeiros jogos de 2020 foram de fato de empolgar.

Até o dia 11 de março, o último dia de Maracanã aberto. 3x0 fácil na Libertadores e vislumbres de mais um ano mágico.

Mas o mundo fechou suas portas e aquele período de 2020 parece nem ter existido.

Ainda tivemos uma pequena rebarba de jogos com Jesus, mas o time perdera o brio. Campeões cariocas em cima do Flu, mas sem empolgação e ainda imersos em meio a vergonha político-simbólica que a diretoria rubro-negra obrigava seu torcedor a viver.

Assim encerrou-se o primeiro ato.

Depois veio a era Dome. Cheia de problemas, lotada de confusões, com um time que aos poucos ia avançando aos trancos e barracos envolto por contusões, surto de COVID, disputas internas na direção e um sensação desgostosa cristalinamente perceptível em campo.

O time não conseguia mais ser o que era até alguns meses antes. Ao perceber isso, portava-se com raiva em campo, descontrolando-se facilmente. E jogando pior, sofria menos do que estava acostumado, era menos dominante do que se percebera e era desafiado por times que perdiam o medo do Flamengo de 2019. O time perdia o controle e, quase sempre, tomava um gol bobo, vindo de uma falha individual tosca e assim perdia pontos, o controle emocional e o rumo.

Terminado o segundo ato, veio o terceiro.

Veio então Rogério Ceni. Quase um Luke Skywalker, representando uma nova esperança, de um técnico brasileiro sobre quem os holofotes se preparavam para iluminar há tempos. Chegou com discurso bonito, dizendo querer recuperar a memória do time de Jesus e enchendo os rubro-negros de esperança.

Nos jogos seguintes vieram as eliminações, as falhas individuais toscas, e o desânimo. Depois delas, vieram os pontos perdidos em jogos fáceis. Mas não por uma questão de mentalidade, e sim porque o time desaprendera a fazer aquilo que fazia de melhor tanto com Jesus quanto com Dome: atacar.

E assim, quase todo jogo de Rogério Ceni no comando rubro-negro termina da mesma maneira. Um deserto de ideias, um time desorganizado, maltrapilho, apelando pra chuveiro na área e tendo de fazer isso sem seus melhores jogadores, porque o treinador aparentemente entende que tirar Éverton e Arrasca no fim de todos os jogos será a solução.

Rogério Ceni no Flamengo até agora é uma grande enganação.

E nada foi mais simbólico para isso do que ontem quando, além de tirar os dois meias, ainda tirou Gabigol. No final, Filipe Luís ainda entregou a paçoca para deixar tudo ainda mais feio. O jogo terminara quase que refletindo o trabalho de Rogério como um todo.

Mas o ano de 2020 estava lá desde o início.

Aquele começo absurdo e empolgante. Com Gabigol e Rodrigo Caio ameaçando o goleiro tricolor. O primeiro ato. Efêmero como o Fla de Jesus.

Depois de 10min, vem o marasmo, quase que uma adaptação a retranca tricolor. A bola circula, circula e circula e de vez em quando o time acha uma chance. E o gol sai aos trancos e barrancos. 

Assim que faz o gol, o time relaxa e o tricolor perde o medo. O Flamengo se descontrola, se desarticula, técnica, tática e mentalmente, e toma o gol bobo, em uma falha individual patética de Filipe Luís. Por alguns minutos, perde totalmente o controle do jogo. Incompleto e irritadiço como o Fla de Dome.

O meio do segundo tempo já trás um time mais ligado, mas sem qualquer tipo de ideia. Vira uma grande bagunça, sem meio de campo nenhum. Aos poucos, a volúpia, cansada de bater em uma parede sem estratégias para furá-la, vai embora e é substituída pelo andar em campo, de um time que, no bom linguajar carioquês, mostra ter "largado o jogo". 

A volúpia não era nada. Era só autoilusão. O Fla de Rogério Ceni resumido em 20 minutos.

Na prática, 2020 acabou para o Flamengo. É quase impossível enxergar o time indo atrás do São Paulo de fato, ou sequer do Galo. Arrasca resumiu:

"Assim, a gente não merece ser campeão".

Mas simbolicamente, ainda parece que vai durar. Não só porque esse jogo tornou-se uma grande metáfora do ano anterior, mas porque as razões do 2020 patético da gávea continuam existindo.

Não nos enchamos da auto-ilusão de ano novo. O rubro-negro sente que, assim como para tudo em nossas vidas, 2021 parece que vai ser apenas uma versão 2.0 do maldito ano anterior.


(Foto: Thiago Ribeiro / Estadão Conteúdo)

No mais,
Saudações Rubro-Negras.

Por Gabriel Félix (@gfelixft), 
Colunista do Flamengo para o Linha de Fundo

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