Em tempos dolorosos, que usemos o futebol para lembrar de tempos de felicidade e brilho.
Aqui vai a história de um dos nossos colunistas. Um brasileiro infiltrado no meio de um Manchester City x Liverpool no Etihad Stadium. Uma noite de magia.
Aproveitem a nostalgia.
Obs: Esse texto foi escrito há exatamente dois anos.
(Imagem: arquivo pessoal)
Se existe uma terra do futebol, ela é a Inglaterra. E se dentro da ilha bretã existe uma terra do futebol, ela é Manchester.
Aqui o futebol se tornou hábito da classe operária e se popularizou, assim como em outras cidades. Isso a ponto de mudar a rotina de trabalho dos ingleses para que nos sábados, às 15h da tarde, o expediente acabasse e os trabalhadores fossem desfrutar de uma peleja do clube local.
Mas aqui a diferença foi um gigante que surgiu e ganhou o mundo. O Newton Heath. Ou, para os de hoje em dia, o Manchester United.
E recentemente ganhou mais importância ainda, com o crescimento do rival azul: o Manchester City.
Não é Londres, mas Manchester que é considerada a capital do futebol na Inglaterra. Até por isso, o museu nacional do futebol inglês é aqui. Ir para lá foi a primeira coisa que eu fiz no dia.
E foi a primeira frustração também. Estaria fechado durante duas semanas. Uma pena.
Passei os dias pelos museus da cidade até que fosse a hora de dar uma de maluco e tentar o que achei que seria mais uma grande roubada.
Na minha concepção, não se vem a Inglaterra sem ver um jogo de futebol. É o coração da vida inglesa.
Portanto, me programei pra tentar ver a partida que fosse a melhor do ano no planeta. Manchester City x Liverpool.
O primeiro, um gigante do novo futebol. Comprado em 2008 por um sheik árabe, o City era um clube que transitava como um iô-iô entre as divisões do futebol inglês, vivendo em função de ver o grande rival da cidade fracassar. Do nada, com a compra, se tornou um timaço e tem hoje no banco o maior treinador e filósofo do jogo, Pepe Guardiola (por quem este que vos fala guarda profunda admiração).
Em 2018, conquistaram o título histórico da liga nacional com a melhor campanha de todos os tempos. Um time vencedor e que jogava bonito, pra frente, encurralando os adversários.
Mas na própria liga e no campo internacional tropeçou em um mesmo rival: o Liverpool F.C.
Os reds são famosos por serem um dos times mais tradicionais da Inglaterra. O maior gigante do país, ao lado do Manchester United. Dono da torcida mais apaixonada, ou melhor, propriedade dela.
No entanto, o Liverpool já passava 28 anos sem ganhar o título nacional. Muito por conta de punições recebidas em razão dos holiganismo dos anos 1980.
Por isso, em 2015 contratou outro ímpar do futebol. Jürgen Klopp. O técnico alemão defende um estilo de jogo-pressão incessante, que oprime o adversário durante o jogo inteiro e os jogadores correm como loucos. Lindo para quem é admirador do clube.
Em 2018, o Liverpool se tornara uma febre mundial com as goleadas que aplicou nos mata-matas da Champions League. Febre maior foi a ascensão astronômica de Mohammed Salah, egípcio que de um jogador comum se tornou um dos melhores do mundo ao fazer 34 gols no campeonato inglês. Um fenômeno.
Sendo assim, estamos falando de um encontro que reúne tudo. Rivalidade. Dinheiro x História. Futebol moderno x futebol raiz. Manchester City x Liverpool.
O contexto desse jogo específico era melhor ainda. No ano anterior, o City estava invicto até encontrar o Liverpool em sua casa no dia 04 de janeiro e perder por 4x3. Naquele dia, o Liverpool era o time invicto, que ia jogar contra o City em sua casa, estando 7 pontos na frente na tabela no dia 03 de janeiro.
Bom. Vamos ao jogo.
Andei cerca de 30 minutos do hostel até o estádio, junto com alguns fãs que iam se aproximando. Era frio, entre 1 e -1 graus.
O Etihad Stadium se vê de longe. Ao contrário dos estádios mais tradicionais da Premier League que são encrostados em ruelas das cidades, o estádio do City tem grande área pra estacionamento, brilha muito por fora e tem eventinhos do clube antes da peleja.
(Imagem: arquivo pessoal)
Ali, já comecei a ouvir os cambistas. Eram vários deles em torno de um tio que vendia cachecóis e coisas do time. Pensei várias vezes se tentaria ou não. Poderia me frustrar como em Liverpool na semana anterior, quando tentei entrar no clássico contra o Arsenal.
Mas pensei, "é hoje". Vai ter que ser.
Afinal, eu havia inclusive mudado o itinerário da viagem para ver esse jogo. A princípio ele seria no dia 01/01. Mas mudando o dia do jogo mudei o itinerário da viagem para estar ali. Então vambora.
- Quanto?
- X + muito (X é o valor que vou pagar no final)
- Não tenho.
- Quanto cê quer pagar?
- X - muito
- Não rola. Faço por X + pouco.
- Não dá. Obrigado.
Saí de perto um pouco. Vem o cambista de novo.
- Tá bom. Eu fecho por X.
- Ok. Como eu sei que não é falso?
Ele me leva ao tio que vendia cachecóis. Ele me mostra uma identidade.
- Eu sou vendedor oficial da coisas do City. Confia em mim. Se você não entrar vem aqui me procurar e pode dar meu nome pra polícia. Eu conheço esses caras. Eles são daqui, são mancunians (locais de Manchester). Se você comprasse em Liverpool, com certeza ia ser falso. Mas aqui, pode confiar.
Confiei.
Resolvi entrar logo. Era agora ou nunca. Nem comprei cachecol do jogo, vai que eu preciso do dinheiro pra voltar pro hostel.
Fila. Revista. Ticket. Catraca. Passou.
PASSOOOOOOOOOOOU!
Euforia sem fim. Eu estava lá dentro.
Era inacreditável.
Me conectei rapidamente a Wi-Fi do estádio (que funcionava melhor que a do hostel) e comecei a falar com todo mundo no Brasil, empolgadasso e gritando pro celular que tinha conseguido entrar lá.
Faltava 1h para a peleja.
O frio começou a congelar minhas mãos que estavam fora da luva para mexer no teclado. Estádio vazio. 20min antes saí das arquibancadas e fui pro corredor quentinho onde estavam todos.
10min depois entrei de volta. O estádio estava lotado agora.
Ia começar.
Antes do jogo, a torcida do Liverpool, a minha direita, já começava a cantar suas músicas tradicionais tão famosas.
A do City demorou a reagir. Todos em pé quando os jogadores entram. Todos sentados quando o árbitro apita.
Sim. Todos sentados. Cada um em seu lugar marcado.
A única coisa que a torcida do City cantava era uma paródia de uma fantástica música do Liverpool. Ah, e mais uma outra zoando um dos maiores jogadores da história dos reds, Steven Gerrard.
Chega um senhor mais exaltado na minha frente. Fala com todo mundo. Me comprimenta. E começa a gritar.
Começa a peleja e a torcida parece nervosa. Ouço xingamentos quase o tempo todo. Esbravejam e gritam, mas pouco incentivam. De vez em quando sai o coro de "C'mon City! C'mon City!"
Aos 11, o Liverpool não marcou por 11mm. Foi só então que quis ver a reação de Klopp. Ali que eu reparei. Eu estava vendo Pepe Guardiola e Jürgen Klopp com meus próprios olhos. Chorei.
Jogo que segue. Palmas em belas jogadas, "Ooooh" em outras, e o jogo seguia truncado.
Acostumado a ver o Flamengo, que vi 25x no ano anterior (ainda na era pré-Jesus), fiquei assustado com a velocidade do jogo. Mais ainda, com a precisão dos passes longos. E ainda mais, com a compactação do jogo e com o duelo tático. Nunca tinha visto dois times tão bem treinados e tão diferentes. Atrás do gol, perto da torcida do Liverpool, eu ficava embasbacado com Fernandinho e Van Dijk.
Aos 40, Allison faz bela defesa. No rebote, Bernardo Silva vai a linha de fundo e cruza. Em frente a torcida do Liverpool, o argentino Aguero (maior artilheiro da história do City) domina e fuzila pra dentro do gol. Explosão no estádio.
"SER-DI-O! SER-DI-O!"
E advinha quem caiu deitado de costas na cadeira da frente? Sim, o senhor exaltado.
Depois de 1min, todos sentam de novo. E só se ouve ao lado os de vermelho cantando "All way the reds, they're marching in!"
Intervalo. Começo a reparar em outras coisas. Nos detalhes agora. Para nunca mais esquecer. As faixas do clube, o formato do estádio, o lugar dos bancos, a inclinação da grama. Gravava tudo na memória.
Não sei se queria que o 2T chegassr logo ou não. Não quero que acabe. Só torço pra que saia um gol do Liverpool aonde estou vendo.
Voltam os times. No inicio do segundo tempo, um jovem atrás de mim começa a cantar algumas músicas. Uma delas sobre o goleiro.
"He's Brazilian
We think he is briliant
He cost us 30million
He is Ederson."
Cantam quanto pagam. Esse é o City.
Volta a peleja e agora com o Liverpool tentando mais. E aos 65, cruzamento de lateral pra lateral, que cruza de novo pra Firmino fazer de cabeça. Os jogadores ingleses do Liverpool comemoram com a torcida. Os estrangeiros comemoram sozinhos.
Eu, fã da tradição, me seguro para não comemorar. Cinco fileiras atrás, alguém não se segurou e foi expulso da arquibancada.
O estádio vira uma geladeira. Mais frio do que já estava.
Guardiola saca David Silva, o espanhol, e põe Gundogan, o turco-alemão. Sim, tem dois Silvas no meio de campo de um time inglês. Na verdade, só há um bretão no time do City.
Jogo trunca-se de novo, mas o Liverpool dá mole. Passou o jogo todo marcando de trás, sem pressionar na frente como faz costumeiramente. Mas em uma única vez, fez por instinto e deu espaço atrás. Na recuperação de bola, o jamaicano Sterling dá a Leroy Sané na entrada da área e a torcida levanta. O alemão dá tiro certeiro no canto e coloca os Citizens na frente.
Festa de novo.
O Liverpool começa a pressionar, quase marca algumas vezes e faltando 5min para acabar o tio exaltado não se senta mais. Parece ser resquício de uma época que se torcia de verdade na Inglaterra. Mas logo logo ouve os gritos pedindo pra que se sente. Revoltado, ele atende.
Para ganhar tempo, Guardiola tira o zagueiro capitão Vincent Kompany e põe outro zagueiro. A torcida se levanta e canta:
"VINCENT KOMPANY! The city owns you money when You leave"?
É sério que isso é o grito de louvor de vcs? Enfim.
E o juiz apita. Fim de jogo.
A torcida grita, se levanta pra ir embora e no alto-falante do estádio toca a Hey Jude que os torcedores substituem por "CITY".
Todos saem em uma escada apertada e vão embora andando.
Passo no mesmo vendedor de cachecóis para comprar um pedido de um amigo e ele me diz: "Você entrou, né? Falei pra você"
Não tinha mais o cachecol do jogo que eu queria. Faz parte. A outra única frustração foi não ver Kevin De Bruyne. Faz parte.
Só sei que sai feliz. Eu e toda a Manchester. Até porque, os fãs do United odeiam mais o Liverpool do que o próprio rival de cidade.
Estamos todos felizes então. Vou pro hostel escutando Oasis, banda original da cidade, com a certeza de que vi o coração da Inglaterra naqueles 90min.
Da velha. E da nova. Da de sempre.
(Mas que ver jogo no Brasil é muito mais legal, isso é)
(Imagem: arquivo pessoal)
No mais,
Saudações Rubro-Negras
Por Gabriel Félix (@gfelixft)
Colunista do Flamengo pelo Linha de Fundo
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