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Violência no futebol: vale a pena? (Parte 1 - Nacional)

A série de textos a ser postada não possui a menor intenção de ser clubista ou sentimentalista em excesso, estarão relatados aqui apenas casos que vi e ouvi e que (infelizmente) marcaram a história do futebol.  

Eu nasci numa família que tem muito amor a camisa. A maioria dos meus parentes torce pro mesmo time, alguns contrariam essa regra mas nada disso importa. Todos nós temos amor aos nossos clubes e acima disso, temos respeito ao amor que o outro sente pelo clube que escolheu viver para amar e servir. Desde pequena, ouço dizer que futebol é amor, que o futebol une as pessoas, que um simples gol faz com que pessoas que nunca se viram na vida se abracem no calor do momento, no meio do estádio, nas mesas dos bares, no meio da rua. Conforme fui crescendo, pude ver que isso é real sim, pude comprovar que o amor pelo clube só aumenta com o tempo, que entender de futebol é bom, que o conhecimento faz com que a gente se apaixone pela história do clube, pelos dramas, que a gente derrama suor e sangue e  o que mais for necessário para estar ali sempre apoiando, vibrando, gritando. Mas por outro lado, infelizmente, conheci o lado infernal do futebol. Perdi a contas das vezes que sai dos jogos 10 minutos antes do apito final por medo da multidão que sairia junto comigo. Quantas vezes já adiei minha ida aos jogos por ter que ir sozinha e esse fato me apavorar pois em caso de alguma confusão, eu não ter alguém fisicamente mais forte pra me proteger de algo que pudesse me ferir ou me ameaçar. Quantas das vezes evitei sair de casa com a camisa do meu time que tanto tenho amor ou simplesmente evitei sair de casa em dia de clássico por medo de alguém sem amor ao próximo, que só olha pro próprio umbigo e que só guarda dentro de si raiva e incompreensão, me machucasse pelo simples fato de eu amar o que eu amo, o que eu escolhi amar, o que eu nasci pra servir e pra torcer. 

(Créditos na imagem)

Nem tão raramente eu me pego pensando em quantas vidas já se perderam por causa dessa besteira. Sim, besteira. Porque nada nunca justificou ou vai justificar a destruição de vidas, de famílias, de futuros, de carreiras, por causa de falta de respeito. E não se trata apenas de respeito ao futebol, o que eu falo aqui é sobre respeito ao outro, é sobre respeitar o amor, a história e a vida. 

Lembro como se tivesse sido ontem do caso de Lucas Lyra, que hoje, com 21 anos, já consegue sorrir mas que passou por muitas dificuldades em 2013. Lucas levou um tiro na cabeça numa briga de torcida antes do jogo entre Náutico x Central, no dia 16 de Fevereiro de 2013. Lucas até hoje segue morando no hospital, já tendo conseguido de volta a fala e uma boa parte dos movimentos do seu corpo. No dia do jogo, quando foi baleado e levado para a emergência do Hospital da Restauração, no Recife, Lucas foi dado praticamente como morto. Os médicos informaram à sua família que a chance que ele tinha de sobreviver era de 1%. Mas Lucas, como um bom guerreiro, foi forte, contou com o apoio de todo o estado e do seu clube de coração, que acompanhou o caso de perto, e venceu essa batalha. 

(Foto: Lucas Melo | Folha de Pernambuco)

Lucas, felizmente e diferente de muitos, sobreviveu. Mas pare um pouco e pense, quantos jovens ou adultos já perderam suas vidas a troco de nada? A primeira vítima fatal entre briga de torcidas foi Cléo Sóstenes, palmeirense e um dos presidentes da Mancha Verde. Cléo foi morto à tiros em 17 de Outubro de 1988, supostamente por torcedores rivais, do Corinthians. A sua morte é tida como o primeiro caso de morte relacionado ao futebol no Brasil. Um último levantamento, feito nesse ano, revelou que desde essa primeira morte, o número de casos deste tipo chega à 275. E ainda revela mais: apenas 9 desses 275 ocorreram em estádios. A última morte dentro de um estádio foi em 2007, no Mineirão.  

Todos nós sabemos que a maioria desses casos de confusões, brigas e assassinatos estão, direta ou indiretamente, ligados às torcidas organizadas. As famosas T.O's começaram a surgir na década de 40. A primeira foi a Charanga do Flamengo e logo depois surgiu a Torcida Organizada do Vasco. Nessa época as torcidas organizadas não eram vistas como o terror dos estádios e/ou das ruas, e sim como uma forma nova de apoio aos times. Hoje, quando falamos em torcida organizada, a primeira coisa que vem em nossa cabeça é a violência causada por aqueles que deveriam apoiar os clubes.  

O Brasil conta com uma infinidade de torcidas organizadas espalhadas não só nas capitais mas também no interior dos estados. E, por coincidência ou não, o Brasil é o país líder no ranking de mortes ligadas ao futebol no mundo. Não, você não leu errado. Aqui é o país onde se mata mais gente NO MUNDO.  

São vários Lucas, vários Sóstenes, são Ronaldos (Ronaldo Pedro Ferreira, de 23 anos, agredido até a morte após tentar entrar no Mineirão pela entrada destinada à torcida rival, no segundo jogo da final do campeonato mineiro, em 2007), são Andersons (Anderson Livi, 16 anos, morreu após levar uma tijolada na cabeça dentro do Estádio Alfredo Jaconi, em Caxias do Sul, RS, e ficar internado sete dias na UTI), são vários Claudemir (Claudemir da Silva Reis, 16 anos, atingido por uma bomba no Mineirão), são Márcios (Márcio Gasparin da Silva, 16 anos, morto após ser atingido por pauladas na cabeça na batalha travada entre são-paulinos e palmeirenses, no Pacaembu, na final da Super Copa SP de Juniores, em 1995), são Sérgios (Sérgio Franceschini, 14 anos, que morreu pisoteado durante uma briga entre torcedores do seu time e do Guarani, no Estádio Brinco de Ouro da Princesa, em Campinas), são Rodrigos (Rodrigo de Gásperi, 13 anos, torcedor do Corinthians, que morreu atingido por uma bomba caseira no Estádio Nicolau Alayon, durante uma partida entre São Paulo e Corinthians pela Copa São Paulo de Juniores). São Joãos e Marias e vários outros jovens e adultos que tiveram seus sonhos de um futuro, de um emprego, de uma família, interrompidos pra sempre por conta de atos injustificáveis cometidos por pessoas que tem como único intuito espalhar a violência. 

Em 1993, o repórter Claudio Tognolli, se infiltrou em 3 torcidas organizadas de São Paulo durante três meses para descobrir como as coisas funcionavam lá dentro. Tognolli afirma numa entrevista dada a ESPN em 2013, que no começo dos anos 90 as torcidas organizadas começavam a perder o controle e a tentarem se adaptar ao estilo dos hooligans, que será pauta da segunda parte desta matéria. Tognolli afirma também que haviam batismos para os primeiros viajantes das T.O's. Em sua primeira viajem por uma das torcida, ele afirma que foi obrigado a beber um gole de cachaça que mais parecia querosene e a passar por um corredor polonês, tomando várias porradas "de baixo pra cima" e cantando a letra de uma das músicas dos Racionais Mc's. Caso ele conseguisse cantar a letra até o final enquanto lutava pra sobreviver aos socos e pontapés, ele estava admitido na torcida. Tognolli conta ainda que as três torcidas eram protegidas por policiais corruptos e tinham relação de venda de armas e drogas por parte desses policiais e que nada disso estavam em sua matéria porque ele era censurado pela lei de impressa. Em resumo, Claudio Tognolli afirma que, depois de tudo que viu e viveu lá dentro, nunca mais pisou em campo de futebol (clique aqui para ser redirecionado à entrevista).

É triste e particularmente me dói e muito ver tanta gente que sorri, que chora e que dá o suor e o sangue pelo clube que ama, serem obrigadas a evitar os estádios, local que muitos tem como sua segunda casa, por medo de sair e de não voltar mais. Tantos pais que querem passar o legado de amor ao futebol para os filhos, tantos idosos que em 70, 80 anos de vida nunca foram a um estádio por terem presenciado essa fase de terror, por terem vistos tantos casos de morte e confusões, aqui ou fora do país. Pais como os meus, que acabam me convencendo a ficar em casa por medo de que o abraço antes de eu sair de casa e a frase "bom jogo, minha filha" sejam as últimas coisas que farão comigo. Me sinto confortada ao saber que não sou a única que pensa assim, que não sou a única que mesmo com todo o amor, sente medo. E a maior prova de que não estou sozinha nessa, são as torcidas CHOPP, já ouviu falar?

(Foto: jornaltudobh)


As torcidas CHOPP surgiram como um sopro de alívio e de esperança pra violência vista nos estádios do país. A primeira torcida CHOPP criada foi a Coringão Chopp (14 de Outubro de 1989), com o intuito de promover a paz nos estádios junto com os amigos e a amada loira gelada. Essa nova forma de torcida organizada não foi bem aceita pelos torcedores no início, mas com o passar do tempo provocou curiosidade e consequentemente a aprovação das torcidas. Para o nosso alívio, as Torcidas Chopp já são realidade nos clubes de futebol de todo o país. Essas torcidas vez por outra esquecem a rivalidade (a rivalidade saudável, vale salientar) e promovem eventos juntas, para mostrar que, mesmo sendo rivais dentro de campo, fora dele a vida segue e que todos nós podemos ser amigos. Boa parte das Torcidas Chopp possuem sites ou páginas no Facebook, caso queira entrar em contato, basta uma busca rápida nas redes. 

Atitudes como a dos idealizadores das Torcidas Chopp nos dão esperança de que o futebol um dia não será mais associado à violência e à mortes de um modo geral. Seja na arquibancada ou no sofá de casa, temos que nos lembrar sempre que não temos o direito de agredir o direito de ninguém e que a gente nunca vai agradar alguém por inteiro. Seja pelo gosto musical, pela religião, pelo time do coração ou por qualquer outras coisa pela qual já nascemos pré-destinados a amar. Seja na quarta-feira à noite ou no domingo as 16h, seja no sol ou na chuva, seja mandante ou visitante, que o amor, sobretudo, sobreviva. Que os abraços de comemoração sejam dados em desconhecidos, que as lágrimas de alegria escorram livremente pelo rosto, que o grito de campeão saia o mais alto e o mais forte que você puder gritar. Que na derrota, os palavrões saiam sem o mínimo pudor, que as lágrimas de tristeza também escorram livres pelo rosto, por que não? Que o torcedor ao lado sinta pena da mãe do juiz depois de você proferir aquelas palavras após ele não ter marcado o pênalti a favor do seu time. Mas que você se lembre sempre que o amor que você sente, que o hino que você canta, é cantado e sentido por outros milhões de brasileiros. Que cada um tem o poder de escolher o que é melhor pra si e que se todo mundo torcesse pro mesmo time, que graça o futebol teria? Que antes de ficar de cabeça quente, você pense na sua mãe, no seu pai, nos seus filhos. Pense no legado de amor que você pode passar para eles daqui uns anos, quando eles crescerem ou vierem ao mundo. Almeje e lute por um futebol melhor, por um futebol de paz, por campeonatos limpos, por torcidas conscientes, para que mais cenas como essas do vídeo abaixo possam se repetir.

(Créditos: Esporte Espetacular)

Milena Pereira@pdsmilena

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