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Um Flamengo desumano



Já busquei em vários lugares a explicação para o meu fanatismo. Livros, filmes, artigos e etc. Essa loucura por futebol tem de ter um motivo. De todas elas, uma das melhores foi a de José Miguel Wisnik. "Teatro humano", onde todas as emoções que fazem do homem o que ele é são expostas, provocadas, enganadas e saboreadas.

Hoje faz 1 ano da maior tragédia da história do Flamengo. 10 meninos entre 13 e 16 anos morreram em um incêndio no alojamento em que dormiam dentro do Centro de Treinamento conhecido como Ninho do Urubu.

Se a descrição fria e numérica não  te comove, feche o olho e imagine a seguinte cena: um menino de 14 anos chegou ao clube de coração com todos os sonhos do mundo. Estar ali já era um, mas ele queria mais. Não deve nem ter dormido na primeira noite, imaginando como seria o dia seguinte. Talvez tenha dormido abraçado em uma bola. Nunca vamos saber, já que ele não está aqui para contar sua história mais. Na manhã do segundo dia o menino morreu queimado vivo, dentro de uma caixa de metal. Seu corpo agora era pó, sua vida jogada no lixo e seus sonhos incinerados. 

Gédson foi só um deles. Christian, Arthur, Pablo, Bernardo, Vitor, Samuel, Áthila, Jorge Eduardo, Gedson e Rykelmo. Dez meninos queimados vivos, ardendo em chamas. Se isso não te toca, não sei o que mais tocará.

Outras tragédias também abalaram o mundo da bola, com até mais vítimas. O avião do Manchester United deixou 23 mortos. O do Torino 31. O da Chape, 71. Em Hillsborough, foram 95 torcedores pisoteados.

Todas elas enormes. Todas elas sentidas. Todas elas lembradas.

Mas nenhuma delas ocorreu dentro das instalações do clube. Nenhuma teve como vítimas um grupo de crianças. Naquele alojamento projetos de vida de famílias inteiras foram destruídos. Sonhos infantis de meninos entregues aos cuidados do Flamengo. Com a responsabilidade de cuidar dos meninos como se fossem seus, o clube lhes colocou em um contâiner sem alvará do corpo de bombeiros e ignorou 31 autuações e avisos de interdição.

Repito: 10 meninos queimados vivos dentro do Flamengo. Existe enorme responsabilidade dos órgãos públicos que, entendendo não haver a documentação e verificação necessária para a existência do alojamento, deveriam ter interditado de fato o CT. Mas eles foram entregues ao Flamengo, não às autoridades. 

E 1 ano depois, a tragédia parece não ter fim.

Tudo bem, a gestão atual tinha chegado há pouco tempo no clube e poderia não ter ciência da negligência. Mas se a diretoria não escolheu a tragédia do ninho, ela podia sim escolher o que fazer com a sua lembrança. Era uma oportunidade enorme do Flamengo se posicionar como clube, se engrandecer assim como sua torcida sempre fez. A nação que transformou "mulambo", "time de pretos", "time de favela" em motivo de orgulho, e que havia chorado em conjunto a morte de 10 dos seus, merecia um clube preocupado em tratar o capítulo mais triste da história do Flamengo como tal. Três eram as missões: amparar as famílias, encontrar os responsáveis e impedir o esquecimento desses meninos. Ser um clube humano, acolhedor e respeitoso com os seus.

Em 1 ano, tudo o que vimos foi o contrário.

Na primeira audiência sobre o caso, o Vice-Presidente Rodrigo Dunshee abandonou a mediação no meio da conversa com as famílias. Apenas três indenizações foram acertadas. Alguns pais dizem mal serem procurados pelo clube, pelos dirigentes ou pelo acompanhamento psicológico. Não há investigação interna no clube. Não há memorial para os meninos. Não houve qualquer entrevista com os dirigentes para que explicassem a situação aos torcedores. Silêncio absoluto durante 11 meses, como se tentando passar a impressão de que havia acontecido, tal qual uma criança passando propositalmente distraída na frente da mãe após quebrar a janela de casa chutando uma bola.

Passaram-se 358 dias até que o clube resolvesse fazer um pronunciamento. E o fez covardemente, escondido atrás de um filtro de perguntas e da edição do canal oficial do Youtube. Ainda assim conseguiram ir mal, colocando o clube quase em posição de vítima da imprensa e as categorias de base como um favor aos meninos de todo país, para quem o Flamengo daria um futuro melhor.

Não, Landim. Eles não tiveram um futuro melhor. Aqueles 10 simplesmente não tiveram futuro.

O que impressionou acima de tudo foi a frieza. Os três cartolas escolhidos falaram do caso como se fosse um episódio qualquer, revestidos de toda uma linguagem técnica sobre valores de indenizações, jurisprudências e sei lá mais o quê. Eram máquinas falando sobre a morte de crianças.

Não adianta vir falar desse caso baseado no jurisdiquês. Primeiro porque não há caso parecido na história. Segundo porque o Flamengo não é uma instituição qualquer. Não é uma empresa privada com o objetivo único de ir atrás do lucro e que presta contas aos donos. O Flamengo tem 40 milhões de acionistas majoritários a quem presta satisfação. Quando o time perde, é à torcida para quem os jogadores se dirigem. Quando se demite um treinador, é à torcida para quem se dão explicações. Quando morrem 10 meninos sob sua responsabilidade é para ela também que se devem as satisfações.

O clube não pode deixar mais isso continuar. É de uma vergonha absurda ver o mesmo time que pagou 17 milhões de euros por um jogador, se recusar a pagar 2 milhões de euros para uma família que perdeu o seu filho porque "estabelecemos um teto baseado em outros casos parecidos e na projeção de carreira". Pipipi popopó.

Vão à merda.

E a quantidade de torcedor vendo isso tudo e defendendo os dirigentes porque acham que estão assim defendendo o clube não está no gibi. Podem estar supondo uma rombo financeiro no clube ou que as famílias estão tentando explorar a situação, ou que o clubismo dos outros impedirá o fim do grito "time assassino" e se posicionar mais firmemente seria uma admissão de culpa.

1) O pedido do ministério público era de 2 milhões de reais para cada família. Isso representaria pouco mais de 2% do orçamento do ano do Flamengo. Não vale a pena gastar isso para amparar uma família?

2) Pode ser exploração. Mas imagina se fosse o seu filho? Você acha que algum valor ia suprimir a dor de perdê-lo?

3) O grito jamais vai parar pelo simples de fato de que enquanto nada for resolvido, esclarecido, apurado e os indivíduos forem punidos, o responsável por tudo isso continuará sendo a instituição. Será o Flamengo.

Defender dirigente a todo custo não é defender o clube. Pessoas vem e pessoas vão e o clube fica. Ainda assim, o Flamengo é feito pelas pessoas que lá estão. Ele é o que é por causa de Zico, Adriano mas é também por causa de Denir, o massagista. O Flamengo é enorme por conta da sua torcida. O Flamengo é rico por Bandeira de Mello e sua equipe. É folclórico por Waldemar, Anjinho, Chapolin e Obina. O Flamengo é campeão da Libertadores por causa de Jesus e Gabigol. E o Flamengo está se tornando um clube frio, desumano e odiável por causa de seus dirigentes. Se tiver gente passando pano para eles, a postura surrealmente gelada seguirá colada ao clube até que as próximas pessoas no comando dele a disfaçam.

Mas elas precisam ser cobradas sobre isso.

Faz 1 ano que acordamos calmamente em nossas camas, e eles foram acordados pelo cheiro de fumaça.. 

Faz 1 ano que tomamos café calmamente enquanto eles pegavam fogo.

Faz 1 ano que choramos suas mortes.

Vimos o time ser campeão estadual. Eles não. 

Vimos o time passar de fase na Libertadores. Eles não.

Vimos Flamengo e Emelec. Eles não.

Vimos seus amigos e companheiros serem campeões brasileiros na base. Mas eles não estavam lá.

Vimos Mister, Gabigol e Bruno Henrique encantarem o Brasil. Eles não.

Fomos campeões da Libertadores. Eles não. 

Não foram, não viram, não viveram.

Não puderam sentir o frio na barriga ao andar pelo CT vendo os caras de perto. Não sonharam em também serem campeões no Flamengo. Não ficaram enlouquecidos com nossos títulos. Não sentiram todas as emoções que o teatro humano do futebol lhes proporcionaria.

Não podem e não merecem ser tratados com frieza. Muito menos suas famílias que, no aniversário da morte de seus filhos, estão sendo impedidas pela diretoria de visitar o local e prestar homenagens porque vai atrapalhar a concentração dos jogadores. Que se dane o jogo contra o Madureira!

Cabe a nós, torcida, impedir que sejam esquecidos. Cabe a nós cobrar investigações e cantar sua perda em todos os jogos, até o sempre. Para que daqui a um século, um menino ouça a música, pergunte ao pai o seu significado e aprenda que 10 meninos morrem no CT e desde então o clube faz tudo do modo mais correto possível com os meninos que lhe são entregues.

Cabe a nós cobrar. Cabe a nós, torcida, abraçar as famílias. Somos nós quem temos que cobrar os dirigentes. Cabe a nós impedir que cada gol e vitória nos faça sentir uma pontada de culpa, que torne o futebol e o Flamengo menos importante.

Cabe a nós amar esse clube o bastante para torná-lo o maior em campo e fora dele. Cabe a nós impedir parar esse Flamengo desumano.

Não podemos esquecê-los. Por eles, por nós e pelo Flamengo.

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