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O Maraca é nosso!

Maracanã: Anatomia de um crime - Vermelho

Desde que Didi chutou aquela bola nos barbantes, a mágica parecia estar lançada. Mas aquela não foi sua primeira partida. Na noite anterior, engenheiros e operários bateram uma pelada no gramado santificado do maior do mundo. Feito pelo povo, apropriado pela gente antes de ser canonizado por deuses.

No dia 16 de julho de 1950, em uma partida entre seleção paulista e seleção quarentena, nasceu o templo sagrado máximo do esporte rei. Maracanã, com espaço para abrigar duzentos mil e mais quem pudesse, nasceu para ser o maior de todos os estádios, para concretizar a bazófia louca dos brasileiros, que se autointitulavam país do futebol sem ter um mundial.

Nasceu para ser inclusivo. O estádio foi projeto para abrigar todas as classes. Nas cadeiras, os ricos e suas senhoras de Copacabana. Na arquibancada a classe média, que até dentro de um campo de futebol podia se sentir um pouco melhor que o pobre geraldino, largado ao relento da chuva, mas que tinha o prazer de correr como um louco em direção ao seu ídolo quando ele chegava perto comemorando um gol.

Se este país foi feito para esmagar o pobre, levar a riqueza dos pretos e dos índios, e estragar a beleza da profanação do sagrado, o Maracanã talvez tenha sido o projeto que mais deu errado, felizmente. Ali, a cidade dos largados, das vielas, e das ruas escondidas da moral e dos bons costumes tinha o seu templo oficial. O espaço onde tudo fazia para estar, onde tudo se podia fazer. 

Se existe algo que espanta a tristeza é a festa, seu salão era o Maracanã. Na cidade da maior festa do mundo, o estádio era o encontro de todas os gritos, danças, músicas e escárnios. Era o carioquismo em forma de concreto, que ganhava vida com as multidões envoltas em deboche, alegria e choro. Lugar das emoções desvairadas, onde os garotos xingavam palavrões, os homens caíam no choro e os pretos índios desse Brasil tiveram palco para brilhar.

O que seria do Maracanã sem Garrincha, e o que seria de Garrincha sem o Maracanã? O anjo-índio das pernas tortas saía dos idos escondidos de Pau Grande para aparecer e fazer a festa da cidade-capital, centro do Brasil. Regia a massa com o balanço das ancas, que entortavam os zagueiros e faziam gargalhar a massa.

O Maracanã foi palco também do Rei de Três Corações, que unia 200.000 em um batimento só, encarnando o Brasil em amarelo, em preto e branco, ou simplesmente em gozo por seus gols, chutes, dribles e façanhas, do preto viril que dançava o esporte bretão a moda do batuque, e sacralizava a profanação, como diria Luiz Antônio Simas.

Ele viu tudo e mais um pouco. Abria espaço a todos e por isso todos queriam ir para lá. Nenhum jogador é o mesmo depois de pisar em seu gramado, assim como a vida de uma pessoa se divide entre o antes e o depois de ver um gol ecoando em suas arquibancadas. Ou isso ou o silêncio absoluto, do qual também foi palco para o maior que já se ouviu. 

Não era só um local. Era um abrigo. O Maracanã é a segunda casa de todo carioca, e de todos os brasileiros que lá quisessem aparecer. É um irmão, um amigo, um símbolo e uma realidade. Imaginário, beleza, poesia e prosa. Fica tanto com a gente, que treme em si mesmo enquanto nossos corações batem forte, como que dizendo: "Eu também sinto esse gol."

Lugar de todos e de todas. Da nação convencida vibrando em vermelho preto, e dos desconfiados nostálgicos vestidos de preto e branco. Da tradição aristocrática tricolor, ao povão pintado de português. A esquizofrenia. A contradição. A vida.

Ele é o que se deu de mais errado um país moldado na desumanização proposital de sua gente. O Maracanã foi o maior teatro humano que já se viu, ouviu e viviu, porque nele se podia tudo, inclusive criar palavras novas para inventar uma rima impossívil.

Desfigurado aos poucos pelas reformas do Brasil selvagem dos anos 2000, tão agressivo quanto o de 1500. O Maracanã inclusivo foi embora, e veio a Arena. Finalmente ele começou a dar certo dentro do projeto Brasil. Sua carcaça foi destruída. Sua gente proibida de entrar.

Mas de vez em quando ele ainda aparece. Mal fazem seis meses em que viu a maior onda de choro coletivo da nação que lhe encheu tantas vezes.

Comemora seu aniversário de 70 anos entristecido. Vazio por uma pandemia que faz dar certo de novo o Brasil, no caminho de encher um Maracanã inteiro de mortos de pobres coitados largados sem conseguir uma cama de hospital.

Mas seu aniversário é hora de comemorar, de lhe dedicar um dia de carinho. É como aquele parente, agora distante, que não vemos já há tanto tempo. No dia do aniversário, bate aquela saudade, pensamos em nossos momentos com ele e lembramos que precisamos estar mais perto porque, se não, daqui a pouco ele vai-se embora de vez.

E aí, vamos deixar ele ir ou vamos retomar de novo o que é do povo, e fazer o Maracanã dar errado para o projeto Brasil, e certo para nós?

Lembremos que a frase mais dita na história dos estádio, por todos os times, cores, crentes e credos, reivindica ele para si. Exatamente por isso, porque ele se permite ser de todos se nós quisermos.

O Maraca, meus amigos, é nosso!


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