Faça Parte

O pesadelo do realizador de sonhos

Flamengo vence no Maracanã vazio em retorno ao futebol durante ...

Reza a lenda que em meados dos anos 1990 os executivos do Manchester United se reuniram certa vez e entraram em árdua discussão sobre uma das maiores perguntas para as quais o esporte bretão jamais encontrou uma resposta definitiva. Para que serve um clube de futebol?

Eis que um executivo se levanta e encerra a peleja intelecto-metafísica com a sentença derradeira, pelo menos para aquele grupelho de diretores: um clube de futebol é um realizador de sonhos.

Não à toa, o apelido do estádio do clube é o "Teatro dos sonhos".

Mas e quando o mundo vive um pesadelo? Para que serve um clube quando uma doença para o mundo durante seis meses, mata meio milhão de pessoas, destrói economias, vidas e também, é claro, sonhos?

Com certeza, não serve para o que fez o Flamengo ontem.

No meio de uma pandemia global, ao lado de um hospital de campanha onde morreram 2, no Estado onde morreram 274, no país onde morreram 1238, Flamengo x Bangu jogaram em um Maracanã vazio, sem público e sem transmissão.

De novo. Se você não se impactou com a informação na primeira vez, leia de novo. Agora com calma.

No meio de uma pandemia global,

ao lado de um hospital de campanha onde morreram 2, 

no Estado onde morreram 274, 

no país onde morreram 1238, 

Flamengo x Bangu jogaram em um Maracanã vazio, 

sem público 

e sem transmissão.

Para que serve esse jogo?

Nenhum rubro-negro viu. O Flamengo jogou para absolutamente ninguém e jogou fora todo o ponto sob o qual se estrutura o futebol e ele mesmo. Sua gente. Por que se joga futebol se não para expurgar os demônios das massas, vê-la experimentar o sublime, criar a festa na monotonia do dia a dia e brindar a alegria de sua gente em simplesmente ser sua gente? O futebol existe para que os torcedores se reconheçam em bares, vielas, casas e aglomerações como partes de um clã de apaixonados por aquele emblema que joga por eles, que os faz maiores do que o são. Por aquela camisa que promete com eles se importar. Por que jogar se não para que os rubro-negros tenham o prazer de vê-lo brilhar?

Simples. Um grupo de calhordas se achou dono do clube, fez dele a imagem futebolística do fascismo e sob ordens de seu capitão botou para o time para jogar. 

Tudo, no máximo, por uma medida que promete ser apenas provisória e que pouco tem efetividade para o clube. E mesmo que tivesse, isso não importaria.

O fato é que daqui a 50 anos, quando lembrarem da pandemia, as pessoas vão falar sobre como o Flamengo foi capacho do presidente, símbolo do fascismo, e jogou para ninguém enquanto a alguns metros estava um hospital de campanha, onde eram tratados doentes do vírus que provocou no mundo a sua maior crise desde a Segunda Guerra Mundial.

A ineroxável surrealidade de ontem só não é a página mais triste da história do clube porque há pouco mais de um ano as mortes aconteceram de fato dentro do próprio Flamengo. E nos dois casos, o que mais dói não é simplesmente o acontecido. É o modo com a diretoria lidou com tudo isso.

O recado é curto e grosso nos dois casos. A diretoria não se importa. Não se importa que dez morreram ou que os sonhos de suas famílias foram destruídos. Não se importa que 1200 estão morrendo por dia, junto com seus planos, objetivos, amores e histórias.

"O Flamengo agora vai ter que parar tudo porquê dez meninos morreram?"
"O Flamengo agora vai ter que parar tudo porquê existe uma pandemia lá fora?"

Vai. Claro que vai.

Se o Flamengo não parar por causa disso, vai parar por quê, ou por quem?

O Flamengo realizou meus sonhos há seis meses atrás. Foi as ruas, se encontrou com a sua gente aglomerada em festa, que viu o Flamengo vir a seu encontro. Se importar com sua felicidade.

Agora, seis meses depois, a diretoria ignora nossas tristezas. Ignora nossos pesadelos.

Morreram dez Flamengos quando aquele meninos pegaram fogo. Morreu uma parte do Flamengo em mim quando o time entrou em campo ontem, enquanto uma pandemia incinera sonhos de tantos rubro-negros e não rubro-negros.

Se não há resposta simples quanto a finalidade de um clube de futebol, existe uma para sua essência. História e torcida. O que faz o Flamengo ser Flamengo são seus títulos, suas histórias e, mais do que isso, as histórias de como sua torcida viveu suas histórias.

A história desse Flamengo de 2020 pode muito bem ser a de como uma corja de calhordas tentou destruir a humanidade que o faz tão grande. Mas também pode incluir como a torcida tentou impedir que isso acontecesse. Afinal, foi a torcida quem fez as homenagens e prestou respeito aos 10 meninos mortos naquele incêndio, a despeito da insensibilidade da diretoria.

Para além da dor saber que o Flamengo jogava, o que mais me corroeu ontem foi a defesa que vi torcedores fazendo da sua entrada em campo. Se depender deles, o Flamengo continua ignorando o pesadelo. Se depender deles, o Flamengo pode ser o Real Madrid do Franquismo ou Lazio fascista desde que jogue e vença. 

Vale a pena isso tudo por um Flamengo x Bangu? 

Com toda a sinceridade do mundo, não valeria nem por uma Libertadores.

Depois da cena triste de ontem, agora é sobre a torcida que recai a responsabilidade da história do Flamengo. O que a diretoria já fez é irreversível. Depende da nação o Flamengo ficar marcado como o clube do bolsonarismo, ou de uma diretoria bolsonarista.

Os próximos dias e meses prometem ser não de sonhos como o Flamengo deveria me fazer realizar, mas de inescapável pesadelo. Jamais deixarei de ser Flamengo, mas jamais esquecerei a vergonha e a tristeza que me tomou ontem. Pior ainda será se a torcida comprar o discurso da direção ou esquecer do por quê o Flamengo existe.

Se o estádio do Manchester United é o teatro dos sonhos porque lá eles entenderam para que serve um clube, ontem as cadeiras vazias do Maracanã simbolizavam cada ausência vivida por nós. Enquanto isso, lá no campo a camisa entrava em campo sem se importar com o vermelho sangue derramado nos hospitais de campanha, e com o preto fúnebre que toma as casas de tantas famílias. Um grande e tenebroso pesadelo.


Além dos textos, você conhece o podcast do Linha de Fundo? Vai lá dar uma conferida!:
https://open.spotify.com/episode/43eVG5fWjYYJPRxvpbVgBR?si=muvX9xjlSo6bGmaYp8234Q

Postar um comentário

0 Comentários