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A irresponsabilidade que é a volta do futebol durante uma pandemia

Foto: Lucas Uebel (Grêmio)
Foto: Lucas Uebel (Grêmio)

Rio de Janeiro retomou o futebol ao lado de um hospital de campanha.
São Paulo retomou o futebol em dia de recorde de casos.
Porto Alegre voltou a receber jogos em uma semana de recorde de casos.

Eu gostaria de entender o que se passa na mente de dirigentes, gestores de federaçõe e governantes. No Rio Grande do Sul, embora o governador Eduardo Leite (PSDB) tenha liberado o Campeonato Gaúcho a partir de 22 de julho, diversas prefeituras mantiveram a proibição de partidas de futebol em suas cidades. A capital Porto Alegre foi uma delas. Só que na última semana, o prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB) cedeu às pressões e liberou que Grêmio e Inter mandassem seu jogos no seus estádios. Mas aí todo mundo vem dizer que “existem protocolos” que permitiram essa volta. Como se o protocolo fosse uma vacina que deixa qualquer pessoa envolvida em um jogo de futebol imune ao coronavírus.

A questão nem é jogar na Arena ou no Beira-Rio. É que antes não podia, mas agora pode. O que de fato mudou para poder? É incoerente que, em duas semanas, o município vá de um quase lockdown para permitir jogos sem ter um indicativo de melhora. A ocupação de leitos UTI adultos segue acima de 85%, segundo a prefeitura de Porto Alegre. As mortes oscilaram na última semana, mas sem mostrar que estariam em queda. De 27 de julho a 2 de agosto, foram 403 óbitos por Covid-19 no Rio Grande do Sul

Você, de outro Estado, pode achar que estes números nem são tão altos, se compararmos com São Paulo, por exemplo. Mas, levando em conta dados de semanas anteriores no RS, é um aumento significativo. De 20 a 26 de julho, foram registradas 341 mortes. Portanto, o aumento na última semana foi de 15%. Se levarmos em consideração os dados de duas semanas atrás, esse aumento foi de 25%. Ou seja, diferentemente do que aconteceu em países europeus, por aqui o esporte está voltando em um momento em que a curva de casos e mortes ainda é ascendente. Por isso, a volta do futebol não é sinônimo de volta à normalidade. 

Essa decisão de voltar com jogos em Porto Alegre veio um dia depois de um dos vice-presidentes do Grêmio, Marco Bobsin, falecer em decorrência de complicações causadas pela Covid-19. Parece que, até quando a fatalidade é próxima, é banalizada. Não poderia ser. Lamentei que o futebol foi retomado, lamento a incoerência de levá-lo para a Capital e lamento que baste um minuto de silêncio para que seja pensado que se pode seguir em frente.

Agora saindo da Capital, vamos tratar sobre os times do interior. Nos estádios da dupla Gre-Nal, não tenho dúvidas de que a higiene e o distanciamento correto entre os profissionais são cumpridos à risca. Entretanto, ponho-me a pensar se os clubes menores têm condições de cumprir as exigências sanitárias da forma necessária. Além dos estaduais, teremos, a partir de agosto, as séries A, B e C, e, em setembro, também a gloriosa Série D.

Esses questionamentos não têm a intenção de acabar com o entretenimento ou o emprego de ninguém, afinal, o retorno do futebol também precisa ser analisado como uma questão econômica. Estima-se que 45% dos jogadores brasileiros ganhem um salário mínimo. O contracheque milionário está restrito à minoria. Há os roupeiros, massagistas, administrativos, e outros tantos empregados que dependem do funcionamento do clube para que suas vagas não sejam cortadas.

Só que é de se pensar também que, enquanto jogadores conseguem seguir, mesmo que minimamente, regras de distanciamento e isolamento, o mesmo não ocorre com muitos funcionários, que dependem de ônibus (muitas vezes lotados) para ir até os estádios, ao passo que jogadores chegam sozinhos, em seus carros de luxo. Aquela história de que “estamos todos juntos” nunca foi verdade. 

Quem defendeu a volta do estadual na atual situação e a qualquer custo, usa o argumento de que é para ajudar os clubes do interior, que precisaram fechar as portas durante a pandemia e não tiveram nenhuma renda. Só que esse argumento é uma falácia. Ano após ano, os clubes pequenos vivem endividados e com dificuldades para se manter. Sua principal renda é das bilheterias, só que a presença de público nem é cogitada por aqui. Como vão pagar as contas e as despesas que uma partida de futebol acarreta?

Eu juro que gostaria de estar falando neste texto sobre os oito gols que o Diego Souza já marcou em 11 jogos pelo Grêmio em 2020 e da importância dele para o esquema tático do Renato Portaluppi. Também gostaria de teorizar sobre os motivos que levaram à queda de rendimento de Éverton. Ou ainda, sobre o quanto eu gosto do estilo de jogo proposto por Eduardo Coudet ao Inter, com pressão e intensidade. Mas só consigo pensar no quanto a retomada do futebol dá errônea ideia de que é possível voltar à normalidade ou ao “novo normal” - um conceito que eu detesto.

Mas, veja bem, em nenhum momento a minha crítica esteve direcionada a você, que, dentro das possibilidades, tentou cumprir as recomendações de isolamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) e, mesmo contra o retorno do futebol, sentou em frente à TV da sua casa (sozinho ou com a família, sem aglomerações) para assistir às partidas e até se prestou a abrir uma cervejinha. Você não tem poder de decisão sobre a volta do futebol. Está cumprindo a sua parte, que é ficar em casa o máximo que puder. Não se culpe por ligar a TV. Culpe os dirigentes, gestores de federações e governantes por permitirem a irresponsabilidade que é uma partida de futebol durante uma pandemia.

Janaína Wille

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2 Comentários

  1. Janaína Wille, saudades de ler textos seu. Que bom que voltou!

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  2. Sem contar que os times do interior estão tendo que voltar a pagar jogador, contratar, pra eles seria melhor nem voltar

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