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Memória de torcedor: 1 ano de "Gabigol tá pedindo"

Geh on Twitter: "28 de agosto… "

Foi o jogo mais estranho da minha vida.  

A volta contra o Internacional era o próximo passo. Nunca gostei de jogar contra eles. O colorado foi outro que vi campeão da Libertadores duas vezes desde a infância. Ainda vi campeão mundial contra o Barcelona de Ronaldinho Gaúcho. Na única eliminatória contra eles, Andrézinho eliminou o Flamengo da Copa do Brasil em 2009 no dia do meu aniversário, com um lindo gol de falta. No resto dos jogos em Porto Alegre, invariavelmente éramos derrotados. Vitória só me lembro de uma, na estreia de Guerrero pelo Flamengo. 

O retrospecto era horrível. E a questão não era só o Inter. Eram os dois times do sul. Jogaríamos fora de casa, um jogo de Libertadores, competição que por épocas me deu apenas imagens de dor e sofrimento. 

E o Inter estava invocado. Nos dias anteriores, circulou a notícia de bastidores falando sobre uma motivação a mais usada pelos colorados. Um vídeo estava sendo passado pelos jogadores no vestiário. Mostrava Gerson, no Maracanã, à noite, virando para a câmera e dizendo: 

- Executamos os caras. VAPO! 

Aquilo tinha virado meme instantâneo.Mas havia um detalhe: o vídeo tinha sido gravado após o jogo contra o Emelec, e não contra o Inter. Vinha sendo passado para os jogadores colorados para motivá-los ainda mais, para se sentirem subestimados pelos rubro-negros. Tolice enorme. 

Ainda tinha o medo de não contarmos com Cuellar. A situação do volante ainda era um mistério. Se de fato não jogasse, o meio de campo ia ser um problema absurdo. Arão estava fora e a única solução era Piris da Motta. Até então o Flamengo vinha jogando com Cuellar e Arão juntos sempre. Sem os dois, ficaria difícil. 

Havia a possibilidade de o paraguaio sem confiança nenhuma da torcida jogar ao lado de Gerson. O jogador já havia jogado em todas as posições do ataque, mas não ainda naquela para a qual tinha sido contratado. Jesus tinha pedido a Gerson para ser um meia central, atuando como volante quando o time era atacado. Com as lesões e confusões o mister já o tinha escalado em todas as posições e já tinha dito. 

- Ele é o meu joker!

O coringa. O homem de todas as posições. 

Mas pudera. Não seria nas quartas de final da Libertadores, a um passo da história, que ele ia testar o jogador em uma posição nova. Ele não era doido a esse nível. 

Chegamos ao dia do jogo. Àquela altura eu já tinha começado minha nova rotina das quartas feiras. De manhã eu ia para uma aula no mestrado, depois trabalhava em Botafogo até oito da noite. Na semana anterior, dia do jogo de ida, eu tinha passado absolutamente o dia inteiro pensando no jogo. Especulando como o time jogaria e vendo programas esportivos. Não conseguia me concentrar em absolutamente nada. Para o jogo da volta, eu não me reconhecia. Parecia um jogo normal. Nem isso. Era um dia normal. 

Passei o dia extremamente calmo. Participei bem da aula na manhã e mal me desconcentrei. Falei pouco sobre isso durante o dia no trabalho. E quando alguém me perguntava sobre o jogo mais tarde, eu respondia: 

- Tô muito confiante. Esse é o problema. 

A todo momento eu esperei a hora em que o nervosismo chegaria. Talvez ele aparecesse quando eu finalmente saísse do trabalho. Um grupo de três amigos morava junto em Niterói. Convidei a mim mesmo para ir à casa deles. Um dos três moradores da casa, era motorista de Uber, perguntei se estaria próximo de Botafogo na hora da minha saída, e combinamos de voltar juntos.

Entrei no carro e partimos. Ele pôs o hino do Flamengo para aquecermos, e depois ficou procurando uma playlist com músicas relacionadas ao time. Mostrei para ele a minha. Já há um ano eu escutava-a no caminho para o Maracanã. 

Achei que começaria a me descabelar com o jogo quando entrássemos no carro. Mas meu único nervoso foi com a hora. Meu medo mesmo era não chegar em Niterói a tempo. 

Deu tudo certo. Chegamos e deu até para ir tranquilamente na vendinha do lado comprar uma coca.  Tudo estava no seu lugar e nada dava a impressão de ser um dia diferente. 

A não ser Jesus. Cuellar jogaria, soubemos algumas horas antes. E supomos que Piris da Motta o acompanharia, para reforçar a marcação naquele jogo. Não tínhamos nos acostumado completamente com o mister ainda. O véio não tinha essa. Botava em campo os melhores que tivesse independente do lugar e do momento. Não colocou Piris. Gerson jogaria ao lado de Cuellar. Jesus o colocava em uma posição nova no jogo mais importante do ano. Esse era o véio. 

Galvão narraria. Que delícia. Galvão Bueno é uma entidade do futebol brasileiro. O homem para mim era o cara dos jogos de seleção e da fórmula 1. Fala muita bobeira, mais conversa do que narra, mas quando narra é absurdo. Houve uma época em que tentamos nos enganar e passamos a xingá-lo. Lembro de mandá-lo tomar naquele lugar em um 5x0 da seleção brasileira no Maracanã. Mas um dia a internet chega, os memes aparecem, e todo mundo aceitou que amava Galvão do jeito que era. 

No Flamengo, vi Galvão narrar poucos jogos. Lembro de 4x0 contra o San Lorenzo e só. Mas era incrível como ele parecia ler a cabeça do torcedor. Quando começa o jogo ele faz a pergunta de todos nós: 

- O Flamengo hoje vem para defender ou atacar? 

Achei que ficaria nervoso quando a bola começasse a rolar. Não fiquei. Bastaram dois minutos para eu entender o porquê. É simples. O time do Flamengo era muito bom, amigo. Não tinha mais ponto fraco em nenhuma posição. Todo mundo jogava bola. E muita bola. O Inter tentou sair jogando e ter volume, mas aos quarenta segundos de jogo Arrascaeta já deu tiro que obrigou Lomba a fazer uma boa defesa. O Inter se assustou. Segue o lance e um minuto depois Cuellar pôs Gabigol sozinho com Lomba. E assim como no jogo contra o Peñarol, ele perdeu a oportunidade resolver tudo antes do minuto dois. 

O time não parou. Aos 3’ Arrascaeta veio pela direita e cruzou na área. A bola bateu na mão de Cuesta, mas o juizão não deu nada. Os primeiros cinco minutos daquele jogo foram disputados no campo do Inter. Ali estava a razão da minha tranquilidade. Depois da semana anterior e do jogo contra o Ceará, veio em uma conversa qualquer durante o jogo a frase que definia aqueles onze da forma mais carioca e verdadeira possível. 

- Esse time é bom para caralho.

E ficou evidente para todo mundo ver naquele primeiro tempo. Não foi o melhor do ano, mas era o melhor até então. Foram quarenta e cinco minutos de soberania absoluta em que o time reinava no jogo. Não era no estilo volúpia costumeiro do Maracanã, partindo para cima o tempo todo, incessante, dando a sensação de que os caras pegavam a bola e disparavam afoitos para o gol. Foram quarenta e cinco minutos de tranquilidade. O time parava, tocava, girava a bola, virava o jogo e seguia dominando. Achava o caminho da área do Inter com naturalidade. Os colorados deram apenas um chute que realmente assustou. No mais, o Flamengo era dono absoluto do jogo, com uma imposição incrível. No final do primeiro tempo Gabigol ainda saiu de novo de cara com Lomba após passe de Bruno Henrique, e jogou para fora. Era jogo para termos feito uns 3x0 com tranquilidade. Só se ouvia a torcida do Flamengo na transmissão do Beira Rio, enquanto da torcida colorada só se ouviam  os gritos de impaciência ou o silêncio da perplexidade em ser dominado na sua casa. 

Era inacreditável. Inconcebível. Era um controle tão absoluto da partida que chegava a dar medo. Principalmente de que os gols perdidos por Gabriel fizessem falta. No mais, não dava para enxergar possibilidade de o Inter vencer o jogo a não ser pelo fato de que o jogo em disputa era o futebol e não o basquete, por exemplo. Flamengo e Internacional foi o jogo para assustar o Brasil. Em rede nacional, único jogo da quarta à noite. Todo mundo viu e saiu embasbacado. 

Mas mais incrível do que isso era o fato de nenhum de nós quatro na casa termos levantado da cadeira sequer uma vez, ou esbravejado com o time (com exceção dos gols perdidos por Gabriel). Era uma calma surreal. No intervalo o papo chegou a sair do Flamengo e ir para problemas da mãe de um, do cachorro do outro ou sei lá mais o que. Era o jogo mais importante dos últimos nove anos e estávamos nós falando sobre um assunto qualquer. Um ultraje. 

No segundo tempo, isso mudaria um pouco. Tinham se passado quinze minutos de um Flamengo ainda melhor do que o Inter, mas eles tinham vindo para cima. Quase como um piloto kamikaze, sem nada a perder, o time foi se lançando ao ataque. O técnico encurralado pela postura defensiva na semana anterior colocou mais atacantes e o time se lançou. O Flamengo não corria riscos até que na bola parada a cabeçada de Lindoso achou o gol rubro-negro. 

Claro. 874987987209874 milhões investidos para tomar gol do Rodrigo Lindoso. 

O mais estranho foi o pós-gol. O gol era nitidamente legal, mas o VAR chamou o juiz. Demorou uns três minutos para que o árbitro fosse ao monitor e pedisse para a jogada ser repetida em looping. Não dava nem para saber o que ele estava olhando. Ninguém entendeu. 

Porém, isso deu uma ajudada. Ao invés de ter tomado o gol e o jogo continuar com um Internacional com mais gás ainda para tentar nos amassar com a pressão da torcida, o impacto do gol foi se suavizando nos seis minutos seguintes. Se poderia bater um desespero no time, a parada deu tempo para se acostumar com a situação, acalmar os ânimos e seguir em frente. Até eu fui me acalmando. 

Agora, não vou mentir. Nos dez minutos seguintes eu perdi umas quatro unhas das mãos. Os cabelos ficaram um pouco bagunçados enquanto o Inter ia jogando bola na área de tudo que é jeito. O Flamengo não conseguia encaixar os contra-ataques e o time ia perdendo força de marcação. 

Mesmo assim, fui ficando calmo. Para aquela situação, estranhamente calmo. A classificação parecia questão de tempo e eu tinha certeza de que sairia um gol. Não uma certeza racional, mas daquela, a rubro-negra. Não deu outra. 

Quando os ânimos do Inter já pareciam desespero, a defesa do Flamengo estava bem postada tirando todas, e a impressão era de monotonia no jogo dali para a frente, o trio da temporada apareceu e a Galvão Bueno o eternizou. Arrascaeta roubou a bola do lado da área de defesa, viu Bruno Henrique perto com o campo todo a frente e deu toque genial deixando-o livre para avançar. Na velocidade ele deixaria quem estava atrás muito mais para trás. Na sua frente só havia Edenilson, volante e pulmão do Inter, e Gabigol. A narração de Galvão era quase uma transcrição literal da minha mente processando o estava acontecendo. O homem adivinhou as palavras que vinham na minha cabeça, na do Hugo, do Lucas e todos os rubro-negros. Se você quiser parar a leitura para ouvir a narração, pode ir lá. Mas aqui vai transcrição também.

“- Dois contra um. Pode ser o momento do Flamengo. Bruno Henrique, partiu. Gabigol tá pedindo! GABIGOL TÁ PEDINDO! GABIGOL TÁ PEDINDO! TOCOU PRO GABIGOL! BATEU! 

- OLHUGOL! OLHUGOL! OLHUGOL! OLHUGOL! GOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOLLLLLLLLLL! ÉÉÉÉÉ DO FLAMENGOOOOO!" 

Enquanto a gente se abraçava na sala, o sonho ia se realizando. Chegávamos aonde eu jamais tinha visto. O Inter precisava fazer mais três e estava completamente morto. E lá em Porto Alegre a torcida nos representava. Se futebol é pertencimento, uma das sensações mais maravilhosas provocadas por ele é ouvir a sua torcida cantar no campo do adversário e saber que você também está lá. Os seus estão fazendo bonito. 

Faltavam pouco mais de dez minutos e de novo eu sentia a estranheza. Não só da classificação, mas do como. Nunca imaginei que estaria em absoluta tranquilidade vendo o Flamengo se classificar em mata-mata de Libertadores. Lá em Porto Alegre, a torcida gritava “olé” a cada toque do time rubro-negro, que não era mais assustado. No final, Arão apareceu comemorando na arquibancada e a torcida gritou seu nome. Era bizarro demais para ser verdade. 

O Flamengo estava na semifinal da Libertadores. 35 anos depois. 

A última vez que isso aconteceu eu não chegava nem perto de ser um projeto. Meu pai nem conhecia minha mãe e era mais novo do que eu vendo o jogo em 2019, aos 23. O Flamengo de agora era um sonho real e a classificação contra o Inter era uma prévia do que viria depois. Em um mês e meio, o mister tinha transformado a história do clube. 

E tudo com a maior tranquilidade. Cheguei em casa, tomei meu Nescau com leite como em uma noite normal. De manhã o céu era mais azul. Acordei no dia seguinte do jogo mais estranhamente calmo da minha vida com o time na semifinal da Libertadores depois de 35 anos. Assim como Gabigol pediu e fez, a torcida do Flamengo também tinha seus pedidos realizados.


Gabigol já fez mais gols que os centroavantes do Fla desde 2015

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