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2019 para sempre: "Como ousa?"

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(Imagem/Alexandre Vidal)

Fui a esse jogo praticamente sozinho. Hugo seria reprovado em uma matéria na faculdade se continuasse faltando aulas quarta à noite. Não iria ao jogo. Mateus também não. Minha companhia era o Vinícius, um amigo do Hugo que nos acompanhava de vez em quando. Depois de encontrar com ele e entrar, ele foi se reunir a sua família, em peso no estádio. Não quis atrapalhar e fiquei no corredor do lado. 

Um dos elementos mais sensacionais de ir ao Maracanã são as amizades eternas que duram noventa minutos. Perdi a conta de quantos estranhos troquei ideia ou vibrei junto ao longo desses anos todos. Em 2009, quando o Angelim fez o gol do título, cheguei a abraçar o desconhecido na minha frente antes de agarrar o meu pai, porque era o corpo mais próximo. Você vira íntimo da pessoa com poucas palavras. O rubro-negrismo é o suficiente para estabelecer o laço.

Com dois minutos de jogo já descobri de onde era o moço. Ia ao Maracanã desde os anos 1990 sempre sozinho, e quase em todo jogo arrumava um companheiro de papo como eu. Discutimos antes do jogo sobre elitização, Jesus, Abel, Gabigol e o Inter que mais uma vez era o adversário. Falamos principalmente sobre Guerrero, ainda sem saber como seria sua participação no jogo.

Paolo Guerrero foi escolhido pela diretoria do Flamengo como o primeiro sinal dos novos tempos, no meio de 2015. Tempos de grandeza eram vislumbrados. Depois de anos na draga, era o primeiro jogador de expressão que arrancávamos do clube original. Centroavante de um milhão por mês, autor dos dois gols do mundial do Corinthians três anos antes. Um novo camisa nove digno de respeito, o último desde Adriano.

A estreia foi perfeita. Um gol e um passe em uma vitória quebra-de-tabu no Beira-Rio. O gol aos oito minutos em Porto Alegre fez Luís Roberto bradar:

- Um atacante de nível internacional!

O começo era muito animador e a torcida do Flamengo criou a expectativa de um imparável fazedor de gols. Fui vê-lo na estreia contra o Grêmio. Me assustou a qualidade do homem fora da área.

Os meses seguintes foram de seca. As críticas foram intensas. Mas Guerrero nunca jogou mal no Flamengo. A torcida não o havia compreendido. O peruano era um enorme jogador, mas não exatamente um artilheiro nato. Quando aprendemos a entendê-lo, talvez tenha sido tarde demais para que alguns tenham podido admirá-lo de verdade. Se além de jogar o que joga ainda tivesse o instinto de um brucutu, nunca teria saído da Europa.

Foram dois anos e meio. Quarenta e dois gols. Título, apenas um, o estadual de 2017. Jogando em times ruins e pouco organizados, passava o jogo inteiro brigando com os zagueiros. Corria a torto e a direito. Por vezes, armou as jogadas para ele mesmo finalizar. Cobrava-se a cada jogada errada. Nunca deixou de chamar a responsabilidade. Nunca fugiu pelo menos de tentar tudo que podia nos grandes jogos. Jogou inúmeras vezes no sacrifício. Foi profissional ao extremo. Foi Flamengo, e entendeu à sua maneira a responsabilidade de jogar onde jogava.

Mas veio o caso de doping. Após classificar o Peru para a Copa do Mundo depois de trinta e seis anos, foi identificado um elemento da cocaína no seu sangue e dali para a frente sua vida no Flamengo terminaria. Ficou seis meses sem jogar e voltou pela primeira vez justamente contra o Internacional. Fez mais um gol, contra a Chapecoense. Mais à frente seu contrato com o Flamengo terminou. Rumou ao Internacional, que pagou seus salários mesmo com o aumento da punição por doping.

No entanto, se havia algo que me irritava era a postura de Guerrero em campo com relação a arbitragem. Tomava cartão amarelo todo jogo e dava chiliques incontroláveis. Sua cabeça raciocinava tanto quanto um amendoim. Irritava os rubro-negros e os adversários. Tinha o emocional do tamanho de uma azeitona.

Nos jogos da Libertadores contra nós, esteve apagado praticamente todo o tempo. Só aparecia mesmo para reclamar. De resto, ficou nos bolsos de Rodrigo Caio e Pablo Marí. Não fez grandes passes, chutes ou sequer conseguiu fazer seu pivô. Anulado. E com mágoa do Flamengo guardada.

O Inter vinha para aquele jogo mordido. A imprensa esportiva bateu muito no colorado depois das derrotas para o Flamengo, chamando o time de medroso e defensivo em excesso. Pareciam dispostos a mostrar o contrário nesse jogo pelo brasileiro e engrossaram nos primeiros quinze minutos, ainda que fôssemos melhores. De repente, meu craquinho Éverton Ribeiro desconcertou o meio campo do Inter e achou Gabigol sozinho. Ele driblou o goleiro e lá de cima, do outro lado do gramado, eu o vi ser agarrado. Pênalti. O juizão ainda foi para o VAR e expulsou o lateral colorado. Gabigol bateu e fez.

Dali para frente, apareceu de novo o mesmo elemento do jogo contra o Cruzeiro: o sono. O time desligou e relaxou como se o jogo já estivesse ganho. Estava bem encaminhado, mas futebol não tem nada garantido. É claro que estavam cansados da maratona. Mas uma coisa era se poupar. Outra era relaxar. Começava a perder as disputas e não imprimia ritmo.

Aos trinta e seis, a bola pingou na área para Guerrero finalizar. Ele e Rodrigo Caio se enroscaram na área e o chute saiu prensado enquanto ele caía pedindo pênalti. O juiz ignorou. O peruano foi como um louco para cima do árbitro reclamando de tudo. Vendo depois, em casa, até achei penal, mas não justificava o escândalo de Guerrero. Na hora, a torcida do Flamengo que dele já não sentia nenhuma falta, já subiu o som: 

- EI! GUERRERO! VAI TOMAR NO CU!

De repente, enquanto via o Flamengo esperar para bater uma bola parada do outro lado do campo, vi o juiz caminhando calmamente em direção a Guerrero e ele chutando o ar que nem um doido. Expulsão. Ele foi arrumando confusão e saiu xingando todo mundo. Eu nem sabia o motivo de tudo aquilo. No intervalo, por WhatsApp, me contaram que em uma disputa com Rodrigo Caio, o choque de cabeça tinha cortado o supercílio de Guerrero. Pedindo cotovelada, ele fazia um escândalo na lateral do campo. Depois fui saber que chamou o juiz para briga e deu até dedo do meio. Passei o intervalo todo recebendo as figurinhas do momento da expulsão enquanto contava para meus novos amigos de noventa minutos tudo o que tinha acontecido lá embaixo enquanto não entendíamos nada. Que delícia. Me diverti muito. Ver Guerrero saído do Flamengo não conseguir fazer nada contra nós era muito bom. Agora nós éramos o clube contra o qual ele não conseguia decidir e ainda por cima não conseguia se controlar.

Tudo certo, né? Estava fácil demais. Depois do jogo do Cruzeiro, Hugo também resolveu brincar de apostar. Disse que havia colocado 3x1 contra o Inter. Mandei uma mensagem já dizendo que ele havia perdido a primeira aposta. Era impossível tomar um gol agora, com dois a mais.

Mas com tudo muito calmo o soninho bateu. No início do segundo tempo a bola sairia na lateral. Rafinha tentou proteger, mas Patrick deu a volta e pôs em jogo. Ela iria agora em direção a linha de fundo. Rodrigo Caio tentou impedir a chegada de Patrick de forma ainda mais tosca e ele pôs para dentro de novo. A defesa estava exposta, a bola foi rolada para trás e Edenilson bateu de fora. Ela desviou em alguém e entrou. 1x1.

Mas o mar de amor estava tão forte que nem a Flamengada viria. A certeza dela veio e foi embora mais rápido do que o Bruno Henrique passando.

- Tu ousa achar que vai ganhar de mim com dois a menos? Já é então! – o time pensou.

O gol do Inter foi aos 4’. Aos 6’, Lomba caiu no chão para fazer cera. Aos 9’, o jogo recomeçou. Aos 10’, Rafinha cruzou pra Arrascaeta fazer de cabeça. Flamengo 2x1. Dali, soninho até o fim do jogo. Toque para um lado, toque para o outro e jogo controlado enquanto se esperava o tempo passar. Lá embaixo e lá em cima. Era nítida a elitização do setor Norte após se classificar nas quartas da Libertadores. Número de sócios-torcedores ficava maior com as vitórias, a diretoria aumentava o preço dos ingressos. Arquibancada elitiza, a voz diminui. Ponto.

Jesus, vendo o sono, colocou ainda Vitinho, Berrío e Reinier. Antes disso Bruno Henrique já tinha feito o terceiro para dar tranquilidade. Foi tão fácil que no meio do jogo gravei um stories. Fla-selfie por um dia. As vezes a gente falha.

No final só deu para lamentar e conversar com meu amigo companheiro anônimo daquele dia as acusações de favorecimento que receberíamos depois das expulsões. Certamente ninguém lembraria do pênalti inexistente marcado para o Cruzeiro no jogo anterior. Mas que falassem. O que importava era a liderança e a penúltima etapa do setembro perfeito. Que viesse o São Paulo.

No mais,

Saudações rubro-negras

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