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A noite perfeita, mas sem mágica


(Foto: APLATPOOL1 / Pool via REUTERS)

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Eu poderia chegar aqui falando de Neneca, o gigante goleiro, de olhar assustado e mãos seguras.

Poderia também falar de Ramon, o brilhantismo que parece surgir na lateral esquerda.

Ou de Lincoln, a quem os companheiros de base parecem ter feito bem e deixado-o a vontade para jogar como fazia nas categorias de base. Uma partidassa.

A dupla Gabigol e Pedro foi também de chamar atenção, assim como a volta de Bruno Henrique.

E claro, caberiam parágrafos e parágrafos sobre Arrascaeta, que talvez esteja mostrando seu melhor futebol desde a chegada ao Flamengo, ouso dizer.

Mas sobre isso, você que está lendo esta coluna poderá ouvir os comentaristas, analistas, jornalistas e futuristas por aí.

Aqui, minha função é ser o flamenguista.

E digo que ontem, mais do que em outras vezes, eu senti saudade.

Saudade dos meus. Saudades de nós.

Nunca fui Flamengo pelo time simplesmente. Sou Flamengo pela massa que, tem no campo, só um alvo para se encontrar. A energia está nas arquibancadas, ou na sintonia do campo com ela. Ontem, aquele 4x0, com a magnética, teria sido mágico.

Vi o jogo em casa, sentado no meu sofá, sem enxergar mais nenhum sorriso além do meu e dos jogadores. Por mais que tenha pulado no sofá com o gol de Lincoln, que tenha gritado na janelas com os gols de Pedro e Bruno Henrique, e que tenha dormido com o sorriso no rosto, faltou quem eu mais queria ver. Faltou a torcida.

Então façamos aqui um exercício de imaginação. E se não houvesse pandemia e os vários desfalques fossem por lesões quaisquer? Como seria nossa noite?

Com certeza começaria nervosa. Na verdade, os dias de véspera já seriam de roer as unhas.

Estaríamos todos confusos, combinando onde ver o jogo, a hora e o local para encontrar os amigos. No meu caso, provavelmente eu estaria checando o bolso de hora em hora para ter certeza de que não perdera o ingresso. Estaria pensando em esquemas de deslocamento do trabalho até o jogo, ou onde dormir depois dele para chegar ao trabalho mais rápido no dia seguinte.

Na data, eu acordaria cedo e sairia sem deixar o manto largado em cima da cama. Iria para o trabalho sem os talheres da marmita, para não perdê-los na revista de entrada do Maracanã. Preocupações comuns de uma noite de Maracanã.

Chegaria relativamente cedo. Encontraria os amigos, a cerveja estaria nas mãos e passaríamos o tempo antes do jogo falando primeiro sobre o trabalho e a vida para então entrarmos na única e exclusiva obsessão de nos classificar mais uma vez na Libertadores. Especularíamos a combinação de resultados, ficaríamos com medo da derrota, mas ela, a certeza rubro-negra da vitória, já estaria ali, como esteve mesmo de casa.

Eu, pelo menos, discutiria arduamente com os colegas sobre minha insegurança com a zaga. "Uma coisa é contra o Palmeiras horrível. Outra é contra esse time bem treinado". E teria que ouvir as quase brigas entre os defensores de Diego Alves e os já empolgados querendo Neneca titular.

Assim que meu ingresso passasse pela bilheteria, eu daria meu grito tradicional de "MENGOOOO!", repetido centenas de vezes na subida da rampa.

Dali, eu já ouviria a massa gritando lá em cima e o arrepio estaria subindo na espinha por mais uma noite de Libertadores.

Na chegada a arquibancada, eu estaria emendando o grito da arquibancada, e ficaria ali alguns segundos só cantando, como tantas vezes já fiz. Procuraria por um lugar, próximo das organizadas mas ainda assim bom de ver o jogo. Subiria na cadeira, organizaria minha tropa de rubro-negros para que todos vissem o campo. Nos próximos 90 minutos, minha existência faria um pouco mais sentido.

O jogo começaria e nas primeiras chegadas do Del Valle eu começaria a falar sozinho. Na primeira defesa de Neneca eu me assustaria, mas diria no ouvido do companheiro de arquibancada: 

"Esse moleque é um monstro."

Mas estaria esbravejando também com a pressão na saída de bola. "Não! Não é pra pressionar! Espera! Marca o Pellerano e pressiona só quando estiver com ele"

Isso tudo enquanto a massa entoaria o de sempre nos inícios dos grandes jogos:

"ÔÔÔÔÔÔÔÔÔÔ! VAI PRA CIMA DELES MENGO!"

(Com meu grito de "Não para, não" ou "Mengooo!" entre as repetições dos versos)

Quando o time começasse a esperar mais atrás, eu diria ao amigo: "Agora sim, tá certinho".

Cantaríamos a música dos meninos e voltaríamos ao grito anterior, que continuaria até o gol, como sempre acontece.

"GOL DO LINCOLN, CARA! DO LINCOLN! ISSO AQUI É FLAMENGO PARA @#%¨&*!!!

Dali, o disco mudaria. O Hino subiria e enquanto "Ô Meu Mengão" começasse, Thiago Maia lançaria Gabigol. Quando ele chegasse de frente pro goleiro, a música pararia e o silêncio pré-gol tomaria o Maracanã no toque de Pedro, só para o barulho subir ainda mais quando a bola estufasse a rede.

As incertezas iriam embora, a festa começaria e dali a noite seria só magia, de quem saberia estar vendo mais uma vez um time para sempre.

No final do primeiro tempo, a comemoração já seria tamanha que nem nos importaríamos com Gabigol. Empolgada com o 2x0, a massa já cantaria o combo "Festa Profana", "Samba da Estácio" e "Vou Festejar" tão característicos de fim de jogo. Nem nos preocuparíamos com Gabigol, já que nem teríamos visto o lance.

Só no intervalo. Aí sim. O burburinho tomaria conta da arquibancada na medida em que os celulares começassem a ser mostrados entre os grupos, com o vídeo da lesão de Gabigol, encontrado pelo camarada que tivesse o melhor sinal de internet.

No início do segundo tempo, os ânimos já estariam até menos exaltados pela tranquilidade. O volume seria um pouco mais baixo, mas ainda assim constante. Até que Bruno fizesse o seu. Aí de novo o vulcão explodiria.

"Ah, cara, esse time é absurdo! Olha pra isso! GANHANDO NA LIBERTADORES SEM ZAGA!"

No quarto gol, já nem comemoraríamos direito. A festa já estaria estabelecida e o gol mal seria grande coisa. Os olhares da arquibancada já seriam muito menos para o campo e muito mais para ela mesma. 

"MENGOOOO! MENGOOOO! MENGOOOOOOOOO, FLAMENGO EU SOU!

Junto aos estrondos dos braços que se movem juntos, e hipnotizam o olhar de quem também está batendo palmas. Eu teria tirado a camisa e preparado-a para a coreografia de que "Que torcida é essa?".

Nos 15 minutos finais, quando o time ameaçasse pela última vez, as luzes dos celulares apareceriam. A arquibancada ensaiaria um "Olé" que seria rapidamente interrompido pela posse de bola do Del Valle. Na última defesa de Hugo Souza, o grito empolgado e merecido surgiria todo atabalhoado, de quem não tinha ensaidado, e resolveu subir na hora!

"PUTA QUE PARIU, É O MELHOR GOLEIRO DO BRASIL (NE-NE-CA!)"

E dane-se que o nome dele é Hugo Souza, e que cantamos a mesma coisa para Diego Alves. 

E também dane-se que antes eu substituí o palavrão por símbolos aleatórios e agora explicitei o Puta-Que-Pariu. Eu também estaria empolgado escrevendo!

A noite acabaria com uma salva de palmas e uma descida de arquibancada lenta, demorada e assombrosamente barulhenta ao som Dezembro de 81.

A volta para casa seria permeada por comentários engraçados dos companheiros de transporte coletivo, enquanto nos dividiríamos entre a vontade de que aquela noite não acabasse e a necessidade de chegar em casa logo e ter alguns minutos a mais de sono até o dia seguinte.

O banho em casa lavaria o corpo suado de uma noite mágica.

Essa é a história que não aconteceu, mas é exatamente o que gostaríamos que tivesse acontecido. 

A noite ontem foi perfeita para o Flamengo. Tirando todo o resto que faltou. Então que fique na nossa imaginação, enquanto essa bactéria maldita não vai embora, até que possamos voltar a normalidade.

Porque esse "novo normal", sem público, sem alma, é inacostumável. Falta mágica. Foi sobre esse exercício de imaginação.

No mais,

Saudações Rubro-negras!

Por Gabriel Félix, colunista do Flamengo pelo Linha de Fundo

@gfelixft

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