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O realismo mágico encarnado: Um deus imortal


Aos 60 anos, o haitiano Jeremiah de Saint-Amour, erradicado na Cartagena colombiana, decidiu deixar a vida. Entendeu que a velhice não valia a pena ser vivida, e que o tempo já experimentado fora o suficiente.

Cito o personagem criado por García Marquez porque, ao contrário dele, Diego Armando Maradona não queria ir embora, mas foi vencido por ela depois de ter tentado tanto. Uma morte arrebatadora como a de ontem já era esperada. Foram várias as vezes anteriores em que ele escapou dela por pura teimosia em viver.

Mas também porque el pibe de oro simboliza no futebol a obra do escritor colombiano.

Gabo foi o maior nome do realismo mágico. A principal particularidade desta corrente literária é fundir o universo mágico à realidade, mostrando elementos irreais ou estranhos como algo habitual e corriqueiro. Além desta característica, o realismo mágico apresenta os elementos mágicos de forma intuitiva.

Entre espíritos, epidemias, inícios e fins de mundo, o surreal era misturado ao real e a vida comum era permeada por elementos absolutamente fabulosos, fantásticos, quase inacreditáveis. Don Diego Armando Maradona era o realismo mágico encarnado.

A vida é real demais. O cotidiano pode ser simples e monótono demais para que sejamos feitos só disso. E quando a América Latina vivia um dia de seus períodos mais reais, mais duros - os anos de uma década perdida - foi Diego quem deu cor, fantasia e alegria a um continente cada vez mais sofrido. Acima de tudo, deu-nos magia, deu-nos encantamento.

Afinal, como não se maravilhar com sua perna esquerda, as idas, vindas, voltas, e círculos que faziam tontear os zagueiros mas que de alguma maneira conseguiam criar uma linha reta de Maradona em direção ao gol?

Como acreditar que era possível aquele baixinho rechonchudo, vindo da Vila Fioritto, conseguir apanhar, apanhar, apanhar e seguir lutando, sem parar, indomável como o mais forte dos guerreiros?

Como se manter inerte a um homem que recupera a autoestima de uma região, faz milagres com a bola no pé e arregimenta as massas sobre si de maneira tal que ainda consegue fazer os napolitanos torcerem contra o próprio país por sua e pela própria causa?

Como se manter indiferente a um homem que vinga uma guerra com a bola nos pés, dribla os ingleses com o qual os seus irmãos argentinos tem séculos de uma relação esquizofrênica e doentia, e faz sobre eles o gol do século? E ainda no mesmo jogo faz um gol de mão e atribui a ela uma intervenção divina, como uma justiça reparatória e sobrenatural que subverte as regras do esporte bretão para humilhar seus criadores?

Maradona era inacreditavelmente paranormal. Um entidade. Uma santidade terrena.

La mano de díos não era do deus cristão ou incaica. Era a sua.

O futebol teve muitos craques. Teve criadores, coveiros, filósofos, pensadores, transformadores e até um rei.

Pelé. 

Assim como em outras áreas da cultura, o melhor de todos recebeu esse título pra si. Mas a comparação não cabe e é injusta, já que Maradona está em outra categoria.  

Pelé é o único rei. Maradona, no futebol, é o único deus.

Pra ser divindade não é necessária a perfeição. São necessários devotos.

Dieguito foi tão espetacular, fantástico, surreal, arrebatador que para ver era preciso crer, e não o contrário. Nenhum homem jamais movimentou tantas multidões e paixões como o homem de tantas facetas e uma perna só.

Nenhum jogador de futebol foi alvo de tantas massas que lhe defendiam cega, apaixonada e incessantemente. Não houve outro tão idolatrado, colocado em um pedestal dos maiores seres já existentes, sentido e vivido como algo além do terreno, movimentando amores e ódios.

Afinal, nem Jesus Cristo agradou a todos.

E se o referido oferecia a outra face, Diego tinha outro estilo. Era desbocado. Não exigia que lhe seguissem, mas às críticas pedia que "la chupen e lá sigan chupando".

Até porque el diez era o Deus de nossa Macondo. Com rosto de indígena e sobrenome italiano, ele foi e é um grito latino-americano. Alto, rasgado, impulsivo, do fundo de nossas gargantas. Chocando, assustando, assombrando. Turbulento, instável, apaixonado. Um rompante de nossa identidade.

Voltando as comparações, entendo que ao contrário de Pelé, sua comparação seria com Garrincha. Pelo jeito errante, a vida turbulenta, a cabeça tumultuada e por ser sinônimo de encantamento. Mas se Garrincha personificava um "bom selvagem", o mito de um indígena pré colonização, ingênuo e pacífico,  o argentino era a América Latina real. Combativa, vivida, sofrida e tomada pela gana, pela garra e pelo espírito de charrua. Congregava em si surrealismo, volúpia, virilidade, ancestralidade e juventude nos cascos de uma perna esquerda fantasmagórica.

E assim como o continente, esteve sempre atribulado entre a condição de periferia e as suas contradições. Seu esforço em posicionar-se sempre do lado do mais fraco rendeu-lhe apoios a neoliberais, fotos com ditadores e amizades com revolucionários. O rosto de Che marcado no braço e o de Fidel na panturrilha. Mordia e assoprava a FIFA. Era fruto, beneficiado e avesso ao sistema que lhe deu tudo.

Na sua vida particular nem se fala. Do mesmo jeito que era simples o suficiente pra mover o mundo tentando pagar a cirurgia de um garoto napolitano, foi envolto em disputas judiciais familiares e deveria sim ser sempre condenado pela maneira com a qual lidou com suas ex-mulheres.

Errante como nós. Errado como nós.

Foi deus justamente por ser um de nós. Jamais foi idolatrado pela perfeição ou buscou ela. Maradona foi o deus pecador de Galeano, que tornou-se divindade justamente por ser tão nosso.

Frágil e forte. Idolatrável e condenável. Humano e divino.

Maradona era todos nós.

Por isso foi tão sentido e vivido. Porque viveu e sentiu como nós. Era ídolo do esporte do qual era apaixonado. Jogava como torcia. Alentava como peleava.

Da mesma maneira que o mundo viveu Don Diego como se aquela magia pudesse acabar a qualquer instante, el diez partia para cima dos zagueiros como se não houvesse um amanhã. Era puro instinto. Fazia do gramado um campo de batalha e traduzia o desespero latino-americano pela vida e pela glória.

A latinidade só é compreendida pela experiência. O maradonismo também. Mesmo o daqueles que não o viram jogar, mas experimentaram seu legado e seu jeito Diego de ser.

Era anti-imperialista e anticolonial, na política e na personalidade. Com ele, não havia separação nem mesmo no seu jeito particular de mover la pelota. Era o que era, não o que queriam que fosse ou que lhe impusessem. Só ele sabia de onde vinha, e o que viu. Só ele podia ser quem era e só seus fãs amá-los como amaram.

E a subjetividade era ainda mais contraditória para ele. A idolatria maradoniana é tão incompreensível que talvez nem ele se compreendesse. Foram sessenta anos de solidão para Diego, jogado em um mundo que o julgava como poucos, mas sobre o qual ele muito entendia. E indignava-se à sua maneira tão singular.

Talvez por isso tenha ficado doente. Quem sabe a tal divindade também não lhe tenha feito mal?

Jamais saberemos.

Mas o fato é que como a matriarca da Macondo fictícia, Úrsula, solitária na vivência dos cem anos, mas sempre rodeada pelos muitos que lhe eram sua família, Maradona também foi rodeado sempre pelos muitos que lhe sorriram e lhes dedicaram o alento e a devoção. Sua vida foi dramática tal qual um tango, como não poderia deixar de ser, e ainda fonte de inspiração para o ser, pensar e agir, argentino e latino-americano. Uma epopéia, um barrilhete cósmico.

Seu gol contra a Inglaterra sintetiza sua vida. O cenário grandioso, as batalhas de narrativas, o maior dos palcos, fazem das atenções voltadas para ele, que arrepia nossos corações. Um gol feito inteiro de gestos tecnicamente simples, mas que no conjunto formam uma das maiores belezas que o futebol já testemunhou. A fantasia, o encantamento, o incrível.

O realismo mágico.

Ou, na versão espanhola, o realismo maravilhoso. Assim prefiro. El diez sempre me maravilhou e por muito tempo considerei-o uma entidade quase imortal assim tal qual todos os deuses.

Mas assim como as estirpes dos Buendía tem seu fim, um dia a hora chega. Mesmo esperada, a notícia arrebata. E a morte anunciada ganha crônicas e mais crônicas e mais crônicas de quem, mesmo com o anúncio feito, ainda se encanta com a repercussão e o tamanho de sua figura.

E lamenta que seja por agora. Que ironia ter Maradona, o homem que mais levou movimentou massas por onde passou, morrido quando elas não podem sair às ruas nem pra velar-lhe como merecia. Morre durante o período mais surreal de nossas vidas. Em tempos de tanta cólera, deixa-nos um dos que mais movimentou amores.

No entanto, assim como Saint-Amour não aceitava a velhice para si, jamais consegui imaginar Diego ancião, experiente, aceitando a idade de bom grado. Tenho pra mim que Maradona jamais sentou em um banco de praça e sentou pra conversar consigo mesmo, como no conto de Jorge Luís Borges. De alguma maneira, seu jeito de viver me dava a impressão de que ele sabia ser seu destino nunca ultrapassar a idade do haitiano suicida.

No fim, Maradona morreu da mesma forma em que esteve durante sua passagem por esta terra e como permanecerá mesmo depois da hora fatal: vivo, real, mágico.

E será imortal, acompanhando outros gênios. No entanto, justamente por ser todos ao mesmo tempo, por ser Gabo, Fidel, Borges, Pelé, Che, Garrincha, Atahualpa, Garibaldi, Messi, Argentina, Tango, Cumbia, eu e você, Maradona será mais do que isso. Será divino.

Um deus.

Obrigado, Diego.


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