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La revancha de los dioses: Barrilete Cósmico, Malvinas, Maradona, Argentina x Inglaterra

Em sua maioria, os estudos latino-americanos sobre futebol têm sido elaborados majoritariamente por sociólogos e antropólogos - com muito poucos estudos de historiadores - mas todos tendem a se concentrar numa área temática bem específica: a relação do futebol na construção de identidades socioculturais. 
Esses estudos tem como interesse como conhecer como o esporte-espetáculo atua como arena, como um catalizador no processo de integração social, produção de socialização e construção de identidades sociais e culturais de diversos cunhos, como identidades regionais, locais, (inter) nacionais, de classes, entre torcedores e jogadores. Consequentemente, função que estaria diretamente ligada à formação de um espaço comunicativo e de acesso relativamente irrestrito no que se toca a barreiras sociais como raça, etnia, classe e nação, por exemplo. Nessa perspectiva, o futebol seria uma arena onde se desenvolvem e se reforçam identidades tanto futebolísticas como não futebolísticas.
Um grande exemplo é da quartas de final da Copa do Mundo da FIFA de 1986 realizada no México, entre Argentina e Inglaterra. O cenário e contexto histórico foram fundamentais para o surgimento de um sentimento nacional argentino frente à Inglaterra.


O placar é familiar, como a data é fatídica e todo mundo sabe que este era o jogo quando bravos Three Lions e toda delegação inglesa foram infelizes e incrivelmente enganados por um certo argentino. O momento que sempre remetem com um tom de indignação moral é lembrado de forma bastante diferente fora da Inglaterra. A quarta de final pode ocupar um espaço semelhante na memória coletiva da Argentina em termos de seu significado, mas o epíteto que é mais comumente usado no cone sul, invocando o interesse do comentarista uruguaio em cosmologia, refere-se previsivelmente a "outro" momento de intervenção sobrenatural naquele dia.
É a natureza do futebol. O sucesso ou a derrota de qualquer equipe pode muitas vezes remontar a apenas alguns segundos que decidem uma tensa partida e até mesmo em que esses segundos, em última análise podem percorrer um longo caminho para decidir a narrativa de mídia para o jogo inteiro, ou mesmo a campanha de toda a equipe. Todo o trabalho duro realizado na qualificação e na fase de grupos pode rapidamente ser desfeita por apenas um momento de idiotice, genialidade ou simplesmente má sorte.
Para os argentinos, 1986 representa um momento de catarse contra um inimigo que em muito transcende as preocupações do campo de futebol, batendo num nervo cru, especialmente no psicológico argentino.
O interesse colonial britânico na Argentina remonta ao século XIX, quando os britânicos, com mais de uma pitada de interesse, estavam entre os primeiros a reconhecer a independência da Argentina. Desde os primeiros dias, o interesse britânico foi significativamente desempenhando num papel fundamental no desenvolvimento do transporte ferroviário, agricultura, processamento, refrigeração e exportação, fornecendo mais de um terço de todo o investimento. 
Pois bem, ao longo do tempo, a Argentina acumulou uma série de rivais no futebol internacional, que vão desde o Brasil, cinco vezes campeão do mundo, até o seu primo menor Uruguai que foi seu adversário nas oitavas de finais da Copa de 1986. O jogo foi disputado no Estadio Cuauhtemoc em Puebla, em que a Argentina merecidamente superou seus vizinhos e rivais históricos por 1x0. Tal é o complexo de superioridade e sentimento de orgulho que os uruguaios sentem em relação ao seu vizinho, teoricamente mais poderosa, que a seguinte frase continua a ser comum nas ruas de Montevidéu. "Ataca Argentina, gol de Uruguai". Como acontece em qualquer derby entre duas forças de tamanho desigual, a rivalidade significa muito mais para o adversário menor. Os argentinos se sentiram mais aliviados do que alegres ao mandar o Uruguai pra casa, uma equipe perigosa e um rival astuto. No entanto, eles estão longe de estarem satisfeitos, pois existem assuntos mais importantes em suas mentes.
No entanto, eu discordo. A próxima rodada os coloca em rota de colisão com o verdadeiro inimigo: a Inglaterra. Em termos de futebol, 20 anos depois da controversa eliminação nas quartas de final da Argentina em 1966 pelos anfitriões e eventuais vencedores, há uma simetria estranha para ser encontrada - especialmente com os argentinos que também iriam fazer de tudo para levantar a taça de campeão do mundo.
Em 1966, é claro, para aqueles não familiarizados com as minúcias da campanha bem sucedida da Inglaterra, Antonio Rattin, meio campo da Argentina e do Boca Juniors, foi expulso por "olhar para o árbitro da maneira errada" pelo árbitro alemão Rudolf Kreitlein. Rattin estava tão furioso que levou pelo menos oito minutos para convencê-lo a sair de campo. Alf Ramsey, técnico da Inglaterra, ficou enfurecido com os argentinos pela sua "performance", e vergonhosamente acabou rotulando os sul-americanos de "animais", e tal farpa acabou irritando ainda mais os argentinos já fumegantes. E por causa desse comentário, Ramsey teve que instruir seus jogadores a quebrar o protocolo e se recusarem a trocar camisas com seus oponentes.
Na verdade, a memória coletiva sul americana da Copa do Mundo de 1966 é uma das mais amargas, vendo a competição como uma intimidação política por parte dos europeus, mais descaradamente exemplificado pelo Brasil de Pelé sendo (literalmente) chutado para fora do torneio por Portugal.
Voltando para 86, muito do sentimento popular em torno do jogo foi ligado a ocorrências para além do campo de futebol. Com a Guerra das Malvinas fresca na mente, os jogadores argentinos sentiram uma enorme responsabilidade de ganhar um jogo que significou muito mais para o seu povo do que simplesmente futebol. 
A Inglaterra ainda teve que superar o Paraguai um dia mais tarde, mas a sensação era do que está destinado a ser. A Inglaterra foi melhorando lentamente após o seu inesperado começo, qualificando-se em segundo do grupo, ao lado de um Marrocos em primeiro, desacreditado mas talentoso. 
Enquanto a questão das Malvinas continua a ser uma força poderosa para a unidade e o nacionalismo populista, é justo referir que a questão não era de importância universal para todos os argentinos. O escritor argentino Jorge Luis Borges marca o conflito como "una guerra de dos calvos por un peine" (uma guerra de dois homens carecas por um pente). O gigante da literatura latino-americana, que, como muitos de seus contemporâneos gastou grandes pedaços de sua vida na pátria espiritual da Europa, aliás, passaria na Suíça apenas uma semana antes do jogo. Mas para aqueles mais perto da face do carvão, as feridas da guerra trágica ainda estavam em carne viva, e um sentimento ardente de injustiça a mera menção do antagonista colonial. Isso só poderia ser saciada por uma vitória contra o poder colonial presumido, superior, personificado pelo grosseiro excesso de liderança de Margaret Thatcher. A famosa Dama de Ferro ofereceu um gesto de positividade para a imprensa britânica ao saber que 323 argentinos tinham morrido em um ataque ao cruzador General Belgrano, que estava se afastando das ilhas e fora da Zona de Exclusão.
Rapidamente provou-se que o poderio militar da Grã-Bretanha não poderia ser igualada pelos argentinos que considera que a invasão é um exercício inútil para todos os interessados, mas no campo de futebol a Argentina há muito tempo tem correspondido e superado os seus rivais europeus com um ar de maldade, gana e catimba, característicos do seu estilo de futebol.
Nos meados dos anos 80, encontra-se uma Argentina cambaleando de crise em crise que luta contra a hiper-inflação, uma causa do compromisso com o Consenso de Washington, impulsionando o neo-liberalismo. Tudo isso enquanto estava se recuperando de um período macabro de terror e desaparecimentos patrocinados pelo Estado sob uma ditadura militar e sua participação na repressão internacional da Operação Condor. Futebol, como sempre, era uma válvula de escape para as massas argentinas.
Fora dos derbys locais e clássicos da Argentina, a rivalidade com a Inglaterra é certamente o antagonismo mais profundamente enraizado entre equipes de diferentes continentes. Dentro das Américas, os argentinos não são conhecidos por sua popularidade. Uma popular piada latino-americana pergunta: "¿Cómo se suicida un argentino? ¡Se sube a su ego y luego salta!" Como um argentino se suicida, explicando que ele sobe até o topo de seu ego e depois salta. Qualquer noção de solidariedade latino-americana é muitas vezes utópico e fora de lugar, e as nuances sutis de cada nação acaba impedindo muitas vezes incentivar o oposto. A existência de termos como "boliguayo", um catch-all pejorativo usado para se referir aos imigrantes da Bolívia e do Paraguai, vai de alguma maneira explicar a popularidade da Argentina nesses dois países. Em um nível mais geral, grandes áreas do continente tendem a se ver como "mestiço" devido à miscigenação no início do período colonial, mas o desenvolvimento histórico da Argentina foi mais próximo à dos Estados Unidos: com a importação de uma classe média europeia a partir de meados do século XIX a meados do século XX. No entanto, apesar de tudo isso, um ponto de unidade em todo o continente é a questão das Malvinas. Em 2012, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva questionou a "explicação política e econômica geográfica para a soberania das ilhas", enquanto Rafael Correa, presidente do Equador, sugeriu que os países latino-americanos devem buscar ativamente as sanções econômicas contra os britânicos.
Com isto em mente, latino-americanos fora da Argentina viam-se confrontados com um dilema estranho, do tipo que todos os fãs de futebol são muitas vezes confrontados com: a de que lado representa o mal menor? É provavelmente justo dizer que o jogo das quartas de final, entre Argentina e Inglaterra, trazia uma significativa carga política sobre ele. É um jogo em que o velho ditado de Bill Shankly sobre o jogo ser mais importante do que a vida e a morte, e por um curto tempo, em certos lugares, parecia ter um anel de verdade para eles. O sentimento nacionalista foi agravado pelo fato de que apenas três jogadores argentinos jogavam em algum clube europeu. Um esquadrão baseado em jogadores que jogavam na Argentina foram unidos por suas experiências compartilhadas da vida em seu país.
Depois de muito alarde, o jogo começou com a Argentina controlando as fases iniciais mas sem conseguir chegar à meta adversária. Falta intencional é tanto uma violação das regras do jogo (e espírito) como a utilização de uma mão, mas de alguma forma dentro da estranha hipocrisia dos valores do futebol inglês, não é. A primeira chance veio de Beardsley chutando nas redes pelo lado de fora depois de Nery Pumpido errar desajeitosamente um carrinho. A bola vai para a linha de fundo. Argentina estava elétrica e não tinha a cautela dos jogos anteriores com Olarticoechea causando problemas para a defesa inglesa e tinha claramente feito sua lição de casa com Hector Enrique implantado para acorrentar a classe Glenn Hoddle e, José Cuciuffo e Oscar Ruggeri marcando exaustivamente Garry Lineker e Beardsley.
O intervalo veio com um impasse, e pouco faz o mundo assistindo saber que dois dos momentos mais lembrados da história das Copas do Mundo virá em um turbilhão de seis minutos. Ambos os incidentes, inevitavelmente, envolve o melhor jogador do torneio: Diego Maradona.
O primeiro gol é descrito por Barry Davies, com uma precisão equivocada. A interpretação do comentarista inglês, que representa fielmente os valores tradicionais do jogo, que se enraizou a mais de um século e continuam a ser dominante até hoje, para grande desgosto e perplexidade do resto do mundo.

"Maradona apenas se afastou de Hoddle, então Valdano... Hodge... e Maradona! Eles estão apelando por impedimento, a bola voltou fora do pé de Steve Hodge e Maradona dá a vantagem para a Argentina. Os jogadores ingleses estão protestando, mas o pequeno homem que começou por uma caminhada passando por Glenn Hoddle, continuou a correr para a frente e o gol é confirmado. Foi impedimento? Ou foi a utilização de uma mão que a Inglaterra estava reclamando?
No entanto, foi mais famosa a narração do lado "argentino" do jogo, que na verdade veio de uma voz uruguaia, a de Victor Hugo Morales. Morales rapidamente percebeu o que aconteceu e, instintivamente, toma o lado dos argentinos, ou talvez mais precisamente seja contra a nação colonial. Morales, pelo menos, reconhece que sua postura não tem nenhum fundamento moral, pedindo o perdão de Deus pelo que ele disse.


"Ahí tiene la pelota Argentina y el partido, ¿para cuando Argentina y el gol?, Vamos muchachos! La pelota viene para Batista, Batista para Henrique, Henrique cambia para el vasco, allá vino para Olarticoechea, que lo tiene a Diego como número diez, a Giusti como número nueve, a Burruchaga de ocho y Valdano de siete. La pelota va para Maradona, Maradona. Puede tocar para Henrique, siempre Maradona y su dribbling, se va, se va entre tres siempre Diego, Genial! Genial! Toco Para Valdano! Entró Maradona, Saltó frente a Shilton… Cabeceoooó… mano… Goooooool, goooooool, goooooool, goooooool, aaaaaaargentino, Diego! Diego Armando Maradona, entro a buscar después de una jugada maravillosa. Un rechazo para atrás. Saltó con la mano, para mí. Para convertir el gol, mandando la pelota por arriba de Peter Shilton. El línea no lo advirtió, el árbitro lo miró desesperadamente, mientras los ingleses entregaban todo tipo de justificadas protestas, para mí. El gol fue con la mano, lo grito con el alma, pero tengo que decirles lo que pienso. Solo espero que me digan de Buenos Aires, si están mirando el partido en televisión ahora mismo, por favor, si fue válido el gol de Maradona, aunque el árbitro lo dio. Argentina está ganando por uno a cero. Que Dios me perdone lo que voy a decir: contra Inglaterra, hoy, aún así, con un gol con la mano, que quiere que le diga." 

La mano de Dios
(Foto: Alejandro Ojeda Carvajal)

A análise do "incidente", ainda é alimentado com rajadas esporádicas de amargura de lado inglês e ocasionais invocações exageradas e absurdas de "intervenção sobrenatural" do lado argentino. Na verdade, a personificação do espírito sangrento inglês, Terry Butcher, nascido na Cingapura, disse que ele adoraria ver Maradona novamente a fim de "enfiar a a mão em sua cara". Foi presenteado com duas oportunidades em amistosos para por seu plano em prática, mas Butcher não fez nada, presumivelmente muito ocupado com sua boca espumando de indignação hipócrita.
A narrativa das "artes mais escuras" do futebol sul americano só contam metade da história, é claro. O técnico Carlos Bilardo definiu esse tom para a forma de como a equipe de 1986 jogou, e questionou se a equipe de Cesar Luis Menotti, de 1978, teria abordado o jogo da mesma forma. Independentemente disso, a dicotomia "bom-mau" que o comentário anterior sugere e todo o debate Menotti-Bilardo é muitas vezes apresentada, como certamente é, uma simplificação grosseira de muitas questões complexas, e é aí que reside o problema.
O incidente infame foi melhor capturado pelo fotógrafo mexicano Alejandro Ojeda Carvajal, que perfeitamente, captura no momento exato que Maradona supera Shilton e bate na bola. O pior ainda estava por vir para a Inglaterra, é claro. Apenas alguns minutos depois, ainda se recuperando do primeiro gol, eles foram surpreendidos por um gol mais parecido ainda com poderes sobrenaturais. 


"Ahí la tiene Maradona, lo marcan dos, pisa la pelota, Maradona, arranca por la derecha el genio del fútbol mundial. Y deja el tercero, puede tocar para Burruchaga… siempre Maradona. ¡Genio, genio, genio! Ta, ta, ta, ta, ta … ¡Gooooooool gooooooool! ¡Quiero llorar! ¡Dios santo, viva el fútbol, golaaaazo! ¡Diegoooool!!! Maradona! Es para llorar, perdónenme. Maradona, en una corrida memorable, en la jugada de todos los tiempos, barrilete cósmico, ¿de qué planeta viniste para dejar en el camino a tanto inglés?, para que el país sea un puño apretado gritando por Argentina. Argentina 2 – Inglaterra 0. ¡Diegol, Diegol!, Diego Armando Maradona. Gracias, Dios, por el fútbol, por Maradona, por estas lágrimas, por este Argentina 2 – Inglaterra 0."

O gol é imortalizado como "barrilete cósmico". A reação espontânea de Victor Hugo Morales naquele dia, explica seu comentário dizendo que naquele momento ele tinha tomado um interesse em cosmologia e muitas vezes usado seu imaginário para descrever momentos sobrenaturais. As palavras por si só fazem o comentário um pouco de justiça. Vale a pena assistir o vídeo só para ouvir o grito primal de alegria por testemunhar um dos momentos seminais do futebol.
Um gol de qualidade e brilhantismo similar está além dos reinos da possibilidade, e, além disso, realiza-lo num momento crucial, numa quartas de final contra um adversário de alta qualidade parece menos provável ainda. Também é digno lembrar que várias oportunidades de quebrar Maradona ao meio foram simplesmente ignoradas. Em nome do "espírito inglês" de estar comprometido de "tentar ganhar a bola de forma limpa", e também a mentalidade dos jogadores ingleses, passava longe do jeito magistral de Maradona e da Argentina. É claro que a aprendizagem é uma coisa maravilhosa, mas parece inconcebível que uma nação mais pragmática conseguiria fazer um gol semelhante.
Entre uma infinidade de análises para o gol, vem um pouco de humor de Hector Enrique, um dos muitos meros mortais anônimos que compartilhavam o campo de futebol com Maradona em 1986. Enrique brincou:

"Con el pase que le di a Maradona, si no hacía gol era para matarlo"

"Com o passe que eu dei para Maradona, se ele não faz o gol, era para mata-lo"


Atordoado pelos acontecimentos estelares de poucos minutos após o intervalo, tardiamente Bobby Robson mexeu no seu time colocando Chris Waddle no lugar de Peter Reid aos 20 minutos do segundo tempo, e lançando John Barnes no lugar de Trevor Steven. Barnes, teve um vislumbre passageiro do que ele fez por tantas vezes com o vermelho de Liverpool, ele acerta a meta argentina. 2x1. E quase exatamente igual a Barnes, minutos mais tarde, veio Lineker desesperadamente perto de fazer o 2x2. Há muitos rumores de que Barnes era incapaz de jogar como jogava em seu clube, como Bobby Robson insistiu.
Voltando à importância do jogo e a forte ligação entre o futebol e a identidade nacional, anos mais tarde, o sociólogo argentino Eduardo Archetti lembra um canto mergulhado no machismo generalizado da sociedade latino-americana que se tornou popular na Argentina no rescaldo do jogo. "Thatcher! Thatcher! Donde estas? Maradona! Maradona! Te anda buscando, para metertela por detras!" Além de sua aparência nada sutil, mas divertida, o canto é claramente amarrado junto a importância do futebol para o orgulho nacional e na ligação que os argentinos viram entre o jogo e a vida real.
Em um nível um pouco mais sério, talvez a mais significativa análise do jogo em seu significado simbólico maior, veio de Jorge Valdano, um jogador que, especialmente, Maradona não gostava.

"En un partido de un grandísimo valor simbólico, Maradona mostró las dos formas de ser del argentino. En el primer gol muestra la trampa, la picardía criolla o la viveza. Argentina es un país donde el engaño tiene más prestigio que la honradez. Pero también tiene otra cara. Es la del virtuosismo y la habilidad. En el segundo gol Maradona corona el partido con una obra de arte. Es la habilidad, la gambeta, la nuestra"

"Em uma partida de um grande valor simbólico, Maradona mostrou os dois modos de ser argentino. No primeiro gol mostra a armadilha, a travessura criolla ou a experiência. Argentina é um país onde o engano tem mais prestígio do que a honestidade. Mas também tem um outro lado. É a virtuosidade e habilidade. O segundo gol de Maradona coroa o jogo com uma obra de arte. É a habilidade, os dribles, o nosso jeito."


Valdano toca na grande dicotomia do futebol argentino, que diferencia-se entre o estilo exemplificado por dois treinadores vencedores da Copa do Mundo com a Argentina: César Luis Menotti e Carlos Bilardo. Menotti, o bon vivant fumante e esquerdista, favorece uma interpretação astuta, de alto ritmo do jogo, com uma forte ênfase em entretenimento e jogando o jogo da maneira "certa"; enquanto Bilardo descaradamente inspira-se fortemente sobre as "artes mais escuras" da vitória do jogo, privilegiando isso acima de tudo.
A conclusão é que a Argentina é um país em que o engano tem mais prestígio do que a honestidade e é apoiada pelo próprio homem - Diego. Maradona fala de seu orgulho em ter feito um gol na Inglaterra desta forma. A ideia de recorrer à astúcia para se sobrepor ao opressor está profundamente enraizada na mentalidade da classe baixa oprimida da América latina.

"A veces siento que me gustó más el de la mano, el primero. Ahora sí puedo contar lo que en aquel momento no podía, lo que en aquel momento definí como La mano de Dios…qué mano de Dios, ¡fue la mano del Diego! Y fue como robarle la billetera a los ingleses, también"

"Às vezes eu sinto que eu gostei mais do de mão, o primeiro. Agora eu posso dizer-lhe que naquele momento não podia, naquele momento o que eu defini como 'A Mão de Deus'. Que a mão de Deus! Foi a mão de Diego! E foi como roubar a carteira dos ingleses também!"


Mesmo na Europa, um dos maiores atacantes da história da Itália, Silvio Piola, achava que "tudo era justo no amor e na guerra", dizendo que ele também tinha marcado com a mão contra a Inglaterra quando jogava pela Itália e comemorou o gol. Piola sugeriu que os fãs italianos deveriam se lembrar disso quando Maradona voltou para a Itália depois da Copa do Mundo.

A generalização de tais características nacionais, claro, é errada e tola. Marcelo Bielsa e Jorge Sampaoli, por exemplo, não são suscetíveis de ter tomado tal orgulho, de ter ganhado do adversário de tal maneira. A crença comum de que um senso de justiça é uma característica inata e única para o espírito inglês, que outras nações são incapazes de compreender, é aquele que certamente nos impede.

Argentina viria a derrotar a Bélgica na semifinal e, finalmente, a Alemanha Ocidental em uma final memorável. A grande Copa do Mundo terminou com Burruchaga deslizando a bola por baixo de Harald Schumacher para desencadear uma onda de celebração em toda a Argentina, e quem sabe, talvez até em outros lugares na América do Sul.

Claro, nem todos ficaram satisfeitos em ver Argentina levantar o caneco em 86. Na verdade, décadas mais tarde, ainda fervendo de raiva e ciúme, Pelé observou amargamente que "o único gol de cabeça importante que marcou foi com a mão", dando crédito a, simplesmente, nenhum jogador, e é sintomático das emoções violentas que o futebol desencadeia.George Orwell foi rápido em negar prudência ao jogo, oferecendo a seguinte análise. "Futebol não tem nada a ver com o Fair Play. Ele está ligado com o ódio, a inveja, arrogância, desrespeito de todas as regras e prazer sádico em presenciar violência: por outras palavras, é a guerra menos o tiro". Enquanto parte da sua afirmação é hiperbólica e bastante controversa, pode-se argumentar que a ideia do futebol constituir "guerra menos o tiro" poderia igualmente ser usado para defender o jogo. Até mesmo o fã de futebol mais partidário tende a aceitar as coisas como elas são após um tempo. (Quase) nenhum fã inglês contesta a genialidade do segundo gol de Maradona, e muitos debates subjetivos alastram no futebol, mas seguramente de uma maneira geral, inofensivo e inócuo.

Concluindo, a história é quase sempre escrita pelos vencedores, dando a dominar as epistemologias de significado, que definem nossa compreensão do nosso meio ambiente em termos ditados por aqueles que saíram vitoriosos. O antropólogo argentino, Walter Mignolo, sublinha isso em sua "Idea of Latin America", texto que põe em causa a nossa compreensão geopolítica do mundo. Em termos futebolísticos, um jogo que exemplifica a forma como diferentes narrativas são convenientemente produzidas para representar eventos históricos, seria em 1986 à vitória da Argentina sobre a Inglaterra, que até hoje alimenta a nossa compreensão histórica do que é de se esperar de um time de futebol de ambas as nações. O entendimento inglês do jogo cultiva e alimenta nosso moralismo, juntamente com os pressupostos de que a boa honestidade vai vencer. A observação de Alf Ramsey sobre os argentinos, chamando-os de "animais'" e o tão falado primeiro gol, também nutrem uma noção de xenofobia de que eles, os argentinos, são menos morais do que os britânicos. É claro que a perspectiva argentina, representada por um comentarista uruguaio, também é altamente subjetiva e é rico em seu próprio prejuízo histórico e/ou um complexo de perseguição. O futebol, pelo menos, oferece uma arena para debater e entender essas parcialidades e preconceitos, no entanto, e certamente não é tão ruim para as relações internacionais como George Orwell sugere. No entanto, o sentimento é muito pelo oposto: o futebol teve e tem tido papel fundamental na construção de identidades nos diversos níveis, como o regional, nacional e também no internacional. As rivalidades, não só no futebol, mas no universo desportivo como um todo, tem suas raízes fincadas muitas vezes nas questões sociais de um cenário e contexto político muito mais amplo.

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