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A Elitização do Futebol foi alvo de protestos da torcida corinthiana |
A história do futebol brasileiro é uma briga de extremos. Vindo, de acordo com a história oficial, no final do século XIX para o país latino, o esporte bretão se instaurou automaticamente como uma prática da elite. Porém, logo as classes marginalizadas entrariam em cena no futebol do país; expropriando o futebol-plágio dos mais abastados, os menos favorecidos ajudariam (em pouco tempo) a criar o estilo de jogo mais vistoso do planeta.
Já em meados da década de
1910, a democratização do esporte recebia duras críticas da elite do país. É
isso o que evidenciam as queixas estampadas na revista Sports, do Rio de Janeiro, naquela época: “De modo que nós que
frequentamos uma Academia, temos uma posição na sociedade, fazemos a barba no
Salão Naval, jantamos na Rotisserie, frequentamos as conferências literárias,
vamos ao five o’clock... somos
obrigados a jogar com um operário, um limador, torneiro mecânico, motorista e
profissões outras que absolutamente não estão em relação com o meio em que
vivemos. Nesse caso a prática do esporte torna-se um suplício, um sacrifício,
mas nunca uma diversão.”
Curiosamente, a primeira
seleção brasileira de expressão em uma Copa do Mundo seria lembrada por
ilustres jogadores negros. Isso ocorreria em 1938, quando o Brasil conquistou a
inédita 3ª posição no campeonato – com uma seleção de nomes insignes como
Leônidas da Silva. Pela sua cor e pelo seu futebol, ele recebera o apelido de
“Diamante Negro”, e saiu da França como o artilheiro e maior jogador da
competição. Era a primeira vez que o mundo do futebol falava no envolvente
estilo de jogo dos brasileiros.
Com justiça, o tempo
honrou a memória dessa seleção. Vinte anos depois, ela seria campeã da Copa com
um plantel recheado de jogadores negros – dentre eles, Pelé, Garrincha, Didi e
Djalma Santos. Mais importante do que isso, porém, o futebol viria a se tornar
um símbolo popular e democrático: um espaço onde pobres e negros poderiam
lograr o sucesso; um lugar em que se permitia uma ascensão social às classes
menos favorecidas que era negada aonde essas procurassem.
Em questão de décadas, o
esporte da elite tornou-se o esporte do povo. Os pobres, que teriam seu acesso
negado no passado, tornaram-se a essência do futebol brasileiro. Frequentavam
estádios – onde conseguiam ver de perto os ídolos de seus times em campo. Os
meninos de origem humilde, maravilhados e se identificando com muitos dos
craques em campo, sonhavam em ser jogadores de futebol. Foi assim com Romário –
originário da favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro – , que se tornaria um
dos maiores artilheiros da história do esporte; foi assim com Cafú, Dani Alves
e tantos outros.
Hoje, o futebol ainda é
encarado, no Brasil, como o símbolo de uma democracia racial que não existe em
nenhuma outra parte. A questão fundamental, porém e infelizmente, é até quando.
Vivemos uma nova guinada no futebol brasileiro: com efeito, um momento de
elitização do esporte no país. A gangorra da história volta a pesar para o
outro lado – cada vez mais, os pobres vão tendo seu acesso ao futebol negado,
como o era em outros tempos.
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Torcida do Santos protesta contra o preço dos ingressos
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O ingresso brasileiro é o
mais inacessível do mundo, levando-se em consideração o salário mínimo do país.
Segundo pesquisa da Pluri Consultoria, o preço dos ingressos mais baratos
cresceu 300% em 10 anos, enquanto a inflação do período foi de 90%. Como se
pode perceber, os dados apontam para um futebol que só pode ser experimentado, in loco, pelos mais ricos. Essa
tendência é especialmente nociva no Brasil, onde o futebol surgiu para
preencher um vácuo de símbolos nacionais fortes. Porém, importante ressaltar,
trata-se de uma tendência mundial.
Sir Alex Ferguson, já
então uma lenda como comandante do Manchester United, se queixou de que os
estádios da Inglaterra passaram a ser ocupados por figurões da alta sociedade,
deixando os verdadeiros torcedores de fora das partidas. Esses figurões,
dissera o lendário treinador no fim do século passado, falavam de tudo durante
suas estadias nos estádios, menos de futebol. Eis a perda da essência das
arquibancadas: outro fenômeno do futebol moderno; outro fenômeno sintomático no
Brasil.
Retirar os mais pobres do
estádio foi também retirar a paixão das arquibancadas. Qualquer um, gastando
menos do que em uma refeição, poderia ver uma partida na Geral do Maracanã.
Tratava-se do setor mais popular do estádio. Lá desfilavam o bom humor e a
autenticidade, sempre buscados pelas transmissões de televisão. Como parte do
projeto do Pan-Americano de 2007, a Geral do Maracanã foi extinta, e, no ano de
2005, viu seu último jogo.
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A Geral do Maracanã comemorando com o lendário Zico |
Os projetos da Copa do Mundo e das Olimpíadas, por fim, sepultaram o charme dos grandes estádios brasileiros. Hoje, quem entre no Mineirão, no Maracanã, na Fonte Nova, pode se preparar para entrar em um belo estádio... europeu. Esse processo de “modernização” dos estádios brasileiros anda junto com a elitização. Na medida em que os próprios vão se pasteurizando em arenas europeias, as arquibancadas vão perdendo a festividade do povo brasileiro, cada vez mais longe das quatro linhas.
Nas palavras de Alexandre
Kalil, ex-presidente do Atlético Mineiro, “futebol não é coisa para pobre”. E
ele explica: “No mundo inteiro, futebol não é coisa para pobre. Doa a quem
doer. Ingresso é caro em todo lugar. Torcida dividida e entrada a preço de
banana estragada só existem no Brasil. O Atlético coloca ingresso a 20 reais e
não lota o estádio. Futebol não é publico, não é forma de ajuda social”.
Existem opiniões que são individuais; já outras, são sintomáticas. Este se
trata, com certeza, do segundo caso.
Se fosse feita uma
pesquisa com os cartolas do futebol brasileiro, e supondo que eles falassem a
verdade, quantos não concordariam com ele? Será que algum ousaria discordar?
“No mundo inteiro,
futebol não é coisa para pobre”. Por acaso, no mundo inteiro o futebol está
enraizado – também – nas classes mais baixas, como no Brasil? “Ingresso é caro
em todo lugar”. E como os outros lugares podem se tornar parâmetro para
analisar uma situação tão particular quanto a brasileira? Ou talvez Kalil
quisesse dizer que, assim como incorporamos os estádios europeus – sem alma
aqui na América –, e como pegamos todas as ideias de jogo europeias,
expropriando o nosso jogo, também deveríamos copiar isso?
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O Novo Maracanã, um estádio europeizado |
Talvez Kalil não pensasse
que as veias abertas da América Latina exigem cuidados e caprichos próprios.
Com certeza – não talvez – Kalil estava era pensando no próprio bolso; e um sistema
que atende bem à elite futebolista em todo lugar funciona, também, nos países
que gostam de se enxergar como o espelho do mundo. Como o caso do Brasil.
E para fechar a sentença:
“[Futebol] não é forma de ajuda social”. É verdade, mas nem tudo o que a
sociedade deve, por direito, usufruir é uma forma de ajuda social. A história
das glórias do futebol brasileiro é também a história do povo. Garrincha não
era absolutamente um arquétipo de homem culto, como também não o era Romário. E
ainda, as torcidas apaixonadas não foram formadas puramente pelo público que
venera partidas de tênis. Retirar o futebol do povo, nessa perspectiva, nada
mais é do que proibir a entrada de um mestre de obra na construção que ele
primorosamente ajudou a edificar.
Muitos dirão, talvez em
defesa dos cartolas e das cartolagens, que os tempos modernos do futebol exigem
esses sintomas que chamamos de elitização. Pois que fique claro: modernização
não é, em nenhuma instância, higienização social; e não pode ser confundida com
tal. Com efeito, o futebol pode ser moderno e democrático ao mesmo tempo. É
claro que isso exige mais uma mudança na gangorra da história. Porém, com
irreverência, o povo já driblou o seu caminho em direção ao esporte da elite. Eis
uma ideia consoladora: não é nada que, em outros tempos do futebol, já não
tenha sido feito.
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