Como todo torcedor apaixonado, me vi um pouco perdido quando o futebol acabou. Se em uma semana eu estava entusiasmado com o mata-mata da Champions League, com a esperança de ver novos clĂ¡ssicos ao vivo, na outra o campeonato foi cancelado. O futebol, no Brasil, na Europa, em todo lugar, foi e levou consigo um pouco do sentimento obcecado de todos os fĂ£s da bola redonda.
No inĂcio, me iludi com a ideia de que em poucas semanas tudo voltaria ao normal — e passei mais de mĂªs remoendo jogos antigos, revivendo clĂ¡ssicos que nĂ£o vivi ao vivo, em um misto de euforia com os Ăcones do esporte e a saudade de ver um jogo sem saber, de antemĂ£o, o resultado. Mas agora, com o retorno da Bundesliga e a iminĂªncia da volta de outras grandes ligas, queria deixar aqui a minha carta aberta ao retorno do futebol:
"Por forças maiores, mas menores que vocĂª, te escrevo estas palavras:
Eu sei que as coisas andam meio estranhas com o mundo. Eu sei que a gente tem sofrido com a negligĂªncia da verdade, a negaĂ§Ă£o dos fatos, e que tantas vidas — antes nomes que nĂºmeros — estĂ£o sendo perdidas nesse caos todo. Eu sei que vocĂª, futebol, nĂ£o pode mudar esses dados; mas vocĂª pode, pode sim, mudar o espĂrito. Se no paĂs onde eu nasci vocĂª sempre foi o suspiro de alĂvio de um povo sofrido, o espaço seguro onde um povo que passa fome pode sentir a verdadeira felicidade, Ă© porque vocĂª Ă© a estrutura quando nada mais ajuda. É porque vocĂª, e sĂ³ vocĂª, pode colocar um sorriso no rosto de quem tem todos os motivos pra nĂ£o perder tempo assistindo 22 caras correndo atrĂ¡s de uma bola. E tambĂ©m porque, na sua futilidade, vocĂª nĂ£o percebe que Ă© a coisa que mais importa no mundo, mesmo que por 90 minutos.
As coisas andam estranhas, mesmo. E talvez todos nĂ³s pensemos, Ă s vezes, em como seria se nada tivesse mudado. "Se tudo continuasse normal...". A gente faz esse exercĂcio Ă s vezes. Mas futebol tambĂ©m Ă© sĂmbolo. E se nĂ£o podemos, em nossas vidas, descobrir essa realidade, Ă© a sua volta que nos sacia dessa vontade de ver tudo ao normal; pois o mundo Ă© outro, o novo normal Ă© outro, mas algumas coisas, em vocĂª, continuam a mesmĂssima coisa, futebol. Quando eu liguei a televisĂ£o pra assistir Borussia x Schalke, pensei na ironia que seria o centroavante norueguĂªs abrir o placar. Dito e feito. O mundo mudou, mas algumas coisas nĂ£o mudaram nada — Halland segue o mesmo artilheiro de sempre. Como segue Lewandowski. E vocĂª, nesse mĂsero instante dedicado ao gol, representa (nada alĂ©m) um arcabouço, um mundo dos sonhos, um conto fantĂ¡stico em que nada mudou, pois pra eles nĂ£o mudou nada mesmo.
É verdade que, mesmo assim, aĂ tem algumas coisas diferentes. O gol ainda Ă© o grande momento do futebol; mas as comemorações andam meio distantes — como tem que ser. TambĂ©m Ă© estranho nĂ£o ver torcidas apaixonadas e opressoras, mas cadeiras frias, impessoais, e vazias. Mas, se os cronistas estĂ£o certos quando narram que vocĂª, e sĂ³ vocĂª, Ă© a metĂ¡fora perfeita da vida, a vida nĂ£o Ă© perfeita mesmo, futebol. E se todo craque jĂ¡ perdeu um gol feito; se todo bom goleiro jĂ¡ sofreu um gol defensĂ¡vel; vocĂª tambĂ©m estĂ¡ sujeito a uma intempĂ©rie ou outra. Nada demais; todo jardim tem sua serpente. E vocĂª segue, mesmo assim, iluminando o caminho de pessoas que precisam, e muito, de um motivo bobo pra sorrir.
Hoje Ă© a Alemanha. AmanhĂ£ serĂ¡ a ItĂ¡lia, a Espanha, a Inglaterra. Hoje, a estrela de Dortmund brilha e Robert Lewandowski monopoliza as discussões do melhor do mundo; amanhĂ£, Messi e Cristiano podem voltar como bestas pra reaver a disputa. E em vocĂª, Ă© disso que mais sentimos falta: os grandes nomes. Sentimos falta de ver Cristiano dando saltos ao topo do Olimpo por um balaço, de cabeça, no fundo das redes. Sentimos falta da visĂ£o de Ă¡guia do pequeno Messi, articulando, armando e definindo uma jogada que sĂ³ ele conseguiria enxergar. Futebol, sentimos falta dos clĂ¡ssicos, dos grandes, dos recordes, das finais. Mas isso estĂ¡ voltando: vocĂª estĂ¡ voltando. E nĂ³s aqui, pacientes na ansiedade, estamos Ă espera.
Uns meses atrĂ¡s, escrevi uma crĂ´nica em sua homenagem. Hoje me recordo dela. Por algum motivo, a ovaĂ§Ă£o Ă© hoje mais necessĂ¡ria do que nunca. Deixo aqui as linhas tortas de uma imagem divina, que derramei com tanto orgulho que o cativo atĂ© hoje:
'Rola a bola, e o mundo roda. Diz o poeta que o sol Ă© uma imensa bola de futebol chutada, todo dia, pelo deus Apolo. Sua parĂ¡bola, na verdade, nĂ£o passa da trajetĂ³ria de uma bola longĂnqua. Ao lugar onde Ă© chutada, chamamos alvorada; e aonde ela some de nossa vista, denominamos ocaso. E, tal como no pĂ´r do sol, o fim de uma partida representa um pacato e bucĂ³lico cenĂ¡rio noturno. Os vencedores e perdedores vĂ£o para a casa. E ao estĂ¡dio sĂ³ resta relembrar, quando jĂ¡ ninguĂ©m estĂ¡ mais pra ver, os ecos de passados distantes e prĂ³ximos. É quando o Monumental se lembra de Di StĂ©fano, e La bombonera, de Maradona. O Maraca e SĂ£o JanuĂ¡rio ensaiam uma antiga disputa entre Dinamite e Zico.
E de madrugada, quando Apolo vai buscar a bola – jĂ¡ entĂ£o longe do domo terrestre — toda a histĂ³ria do maior esporte do mundo Ă© recontada. No Brasil, na ItĂ¡lia, Inglaterra e Espanha; da Argentina Ă França, na Holanda e no Uruguai. Mais de um sĂ©culo e meio de emoções, sonhos e realidades. E quando Apolo dĂ¡ o pontapĂ© inicial pra mais um dia, as gramas das quatro linhas se reavivam. E se o sol, lĂ¡ de cima, Ă© testemunha de tudo que acontece, Ă© cĂ¡ embaixo, entre as quatro linhas, que se desenrola a dança dos deuses. E que os pĂ©s de um PelĂ©, de um Cruyff, de um Maradona, Ronaldinho ou Messi desenham as maiores pinturas que jĂ¡ viu a arte do futebol.'
Queremos as novas histĂ³rias; queremos a dança dos deuses; queremos as disputas Ă©picas e queremos as pinturas divinas que vocĂª, futebol, ainda tem pra nos oferecer. Lembro agora de uma anedota que nos conta o gigante Eduardo Galeano. Segundo ele, uma teĂ³loga alemĂ£ foi questionada sobre como explicaria a felicidade a um menino. Confrontada com essa pergunta, pra muitos uma questĂ£o filosĂ³fica grave e sĂ©ria, ela responde simplesmente: "NĂ£o explicaria: daria uma bola para que ele jogasse..."
É aqui que volto ao ponto inicial de minha carta. Pois se o meio de campo Ă© um cĂrculo perfeito; e se a bola tambĂ©m Ă© (ou deveria ser), tambĂ©m essa carta se finda voltando ao inĂcio, em um ciclo. Como eu dizia, sĂ£o tempos tortos, e nĂ³s precisamos de um motivo bobo, frouxo, pra sorrir. Precisamos, todos, ser absorvidos por uma realidade outra que, naquele momento, Ă© a Ăºnica possĂvel. Precisamos de um suspiro de alĂvio pro nosso espĂrito sofrido. De um grito de gol que abafa, com suas notas, a repressĂ£o que sofremos e precisamos lidar em nossas vidas. É isso que precisamos que vocĂª seja, mais uma vez.
Rola a bola, o mundo roda. E nenhum torcedor fanĂ¡tico negaria que esses dois atos sĂ£o, na verdade, praticamente a mesma coisa.
Ao querido futebol."
Em homenagem a Eduardo Galeano
que soube, como poucos,
ler e respirar a vida
ler e respirar a vida
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