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Por que nos apaixonamos por clubes de futebol?


 

Não há pergunta mais banal, mais idiota, nem mais difícil de ser respondida.

Para um não convertido, nenhuma resposta, fosse ela científica ou romântica, filosófica ou emocionada, religiosa ou revolucionário, seria suficientemente aceitável. Muito menos compreensível. 

E entre os convertidos, nenhuma resposta, vinda de torcedores de um mesmo time, de compatriotas, contemporâneos, conterrâneos, de um mesmo sofrimento ou de uma mesma vitória, seria comum.

Talvez fosse parecida. Igual? Jamais.

Alguns até nem sabem expressá-la. Ou sequer refletiram sobre ela. 

"Por que amar? Por que sim, ora. É o Flamengo!"

Racionalizador insosso e entediante até o fim, passei anos tentando responder essa pergunta. E achei minha resposta.

Mas o que acontece quando nem ela parece o suficiente?

O que acontece ao cientista que perde a razão, o romântico o lirismo, o religioso a fé? O torcedor, a paixão?

Veja: o amor não se perde. A devoção, o compromisso, o vínculo, são irrevogáveis.

Mas e se aquilo que difere o futebol de todas as outras coisas (sim, aquilo) lhe desaparece? Some, se descola, se esvai.

Eu me assim.

Por uma quantidade gigantesca de motivos, eu me afastei do Flamengo e o Flamengo me afastou. Talvez também por um descarga de adrenalina pós 2019. Mas por tantas outras razões ligados e não ligadas ao Flamengo.

Como mais importante entre as coisas menos importantes, me importar com o Flamengo tornou-se instintivamente cada vez menor. Vivemos uma pandemia, meu deus do céu. Quase 700 mil pessoas morreram. Somos governados por um fascista, e o mundo vai se desabando na nossa frente. E a vida parece normal para tanta gente. Como?

E o Flamengo? Que quis jogar para ninguém? Que, como direção, fez de tudo para que eu o odiasse, me envergonhasse, me frustrasse? 

E eu media os números da pandemia por Maracanãs de rubro-negros. Quando o número chegou a 70 mil, eu imaginava um Maracanã. Agora, seriam quase 10.

Perdi conexão. Aquilo que me faz Flamengo parecia sumir. A sensação era de ruir o meu corpo, faltar um pedaço da minha alma. Por tantas vezes deu quase pra ver isso sair de mim. Uma sensação pueril que quase dava para pegar, mas era impossível.

Um fantasma.

Desde 2020. Não sentia o tremor nas pernas. Parei de sentir a excitação. Parei de sorrir. Parei de chorar.

E vem a dor.

A dor do vazio. Da falta. Da ausência. Do nada.

A pergunta virou ao contrário? A angústia virou do avesso. A pergunta do início virou: "por que não consigo me apaixonar de novo?"

Por que não choro mais? Por que não grito mais?

Até para terapia fui. Lembro claramente do dia que eu chorei falando "Eu não sentia uma raiva real de bater na Andreas. Por que?"

Pulsão de vida que faltava. O acúmulo bateu de tudo bateu.

Eu queria sentir raiva. Eu desejava arder em chamas por dentro. Eu precisava chorar de tristeza.

E não conseguia.

Nem voltar ao Maracanã adiantou. Foi uma volta tão frustrante que fiquei meses sem ir mesmo após a volta tão esperada. Doía demais voltar e não sentir aquilo.

Fora o fato de que eu rememorava as minhas contas mórbidas da pandemia que usavam o Maracanã como unidade de medida.

Decidi comigo mesmo que ia fazer aquilo voltar como se fosse um exercício. Que recuperaria o meu sentido pelo esforço. Faria crescer pelo cansaço. Hipertrofiar por estresse. Pegar ritmo de jogo, ver se pegava no tranco.

E o Flamengo, como sempre, não falhou comigo.

Me chamou para voltar junto. E eu voltei por um dia, de fato. No dia que o inferno voltou. Gabigol chamou e eu fui. Aquele era um dia de raiva e de ódio. E foi o que voltou primeiro.

Mas ser Flamengo pra mim nunca foi isso. Aquilo que me fazia Flamengo ainda precisava de um empurrão. O empurrão que o Corinthians deu.

Eu precisava de apuros. Eu precisava de aperto. Mas só se fosse seguido de alegria.

Meu companheiro de arquibancada agarrou-se a mim, e de mãos dadas estivemos por cerca de 10 min, assistindo a cada um dos 14 pênaltis.

Talvez, os 10 minutos mais importantes da minha vida.

Uma vez eu escrevi: 

"Cada gol é uma explosão de alegria após as tensões que o jogo te impõe. O futebol abriga todos os gêneros narrativos possíveis dentro de si, te joga todas as emoções, enquanto você espera pelo orgasmo de alegria: o gol. Ele é um jogo de dúvidas, dos quais você tira as certeza mais absolutas. O grande teatro humano te ensina o que é a vida e te dá alegrias puras e inquestionáveis nos gols e nos títulos. Existe ao algo mais sensacional, empolgante, incrível e mágico do que isso? Existe. Quando essa sensação é compreensível e compartilhada."

Depois que Matheus Vital isolou, eu e meu eterno companheiro de arquibancada estávamos abraçados e nos tremendo. Mais do que em qualquer outro momento eu diria. Ele chorava de soluçar. Eu respirava.

Respirava como se ganhasse combustível de novo. Respirava por que sentia o choro vindo, porque minha perna tremia, porque minha raiva tinha aparecido e se esvaído e porque durante aquela noite toda eu senti muito medo tão forte e espinhento que o mundo parecia acabar. Eu respirava por que sentia. 

Dois minutos depois. Rodinei garantiu o abraço 2.0. Agora com choro, agora com minha alegria. Pura, absoluta, compreendida e compartilhada. Foi um dos melhores dias da minha vida.

E óbvio, lembro sempre se mestre Hornby: "Então, por favor, sejam tolerantes com aqueles que reputam um momento esportivo como o melhor da vida. Não é que nos falte imaginação, nem que nossas vidas tenham sido tristes; é só que a vida real tem menos cor, é mais chata e tem potencial menor para um delírio inesperado."

Obrigado Flamengo. Mais do que pelo título. Mas por recuperar minha felicidade. Por recuperar a alegria de ouvir 70mil vozes. Por fazer minha paixão de viver voltar. Mais uma noite de delírio e sensações para vida toda.


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